Um dos segredos de um bom novelista é saber dosar a graduação do conflito ao longo da trama. Com poucos problemas a serem resolvidos, a história tende a ficar insossa, sem graça, se torna um desses livros que largamos antes da página sessenta. De forma contrária, com muitas lutas e pouca explicação, o leitor absorve uma caoticidade que pode fatigá-lo pelo excesso de interrogações. Agora imagine quando além do texto, você tem que se preocupar com o grafismo que complementam a informação textual. Tudo isso sem deixar a atenção do leitor cair. Haja habilidade. Essa destreza é a chave da russa Anya Ulinich em O Barril Mágico de Lena Finkle (WMF Martins Fontes), uma ambiciosa novela gráfica.
A história começa de forma acanhada e muito particular: Lena Finkle é uma imigrante russa que chegou aos Estados Unidos nos anos de 1990, torna-se escritora e é chamada para voltar à Rússia 20 anos depois para dar palestras sobre seus livros (grande parte da trama é baseada na história de vida da autora). Voltando ao país de origem, a novela segue para as diferenças culturais (principalmente sobre sexo), entre os dois países. A personagem narra o despertar sexual nos EUA em comparação ao que ela sabia de sexo na Rússia. As discrepâncias intensificam a narrativa porque a autora utiliza flashbacks para aprofundar o nosso conhecimento sobre a personagem principal.
Daí em diante a obra vai tomando corpo e os conflitos intensificam-se: Lena tem dois casamentos falidos, duas filhas, um caso com um russo ex-namorado de infância, problemas com os pais (a mãe se tornou bem sucedida nos EUA enquanto o pai está quase desaparecido), conflitos com o modo de vida americano, com a situação das amigas, e com os novos affairs que ela conhece ao frequentar aplicativos para namoro online.
O Barril Mágico de Lena Finkle é uma novela gráfica ambiciosa que entrega tudo o que promete. Ao construir o ambiente ao redor de Lena Finkle, a autora discute relacionamentos abusivos, sexo, internet, imigração, família, modo de vida americano, capitalismo, feminismo, violência, machismo, auto-estima, filosofia, psicologia, tudo dramaticamente dosado, sem excessos ou falta de qualquer componente. Por conta disso, os grafismos que compõem a trama são esticados ou comprimidos para se adequar ao propósito de cada cena. Isso explica o aparente caos na arrumação das imagens.
Mas, ao contrário do que possa parecer sobre os traços grossos e obtusos que por vezes aparecem na trama, há uma harmonia estética que visa demonstrar por meios visuais o redemoinho de responsabilidades ou insinuações que turvam a sobrevivência da personagem. Cada componente, seja o amor, os relacionamentos abusivos, a imigração, a família etc, deixam a marca na protagonista e ela escolhe exibir como tatuagem ao leitor. Quem lê, nesse caso, também é puxado ao redemoinho da personagem, contudo, tem a opção de estar a salvo.
Lena Finkle não, principalmente quando o assunto são relacionamentos. Por sinal, este é o ponto de virada da trama. A ida à Rússia catalisa os ditames amorosos que prendem a personagem do meio ao fim da história. São essas situações de amor, ou quase-amor, que detonam os outros assuntos. A autora, portanto, cria os pretendentes de sua protagonista e, a partir deles, constrói e desconstrói os paradigmas que formam o estilo de vida americano pelo espelho da personagem, uma imigrante quarentona, irônica e com duas filhas. O que fica mais notável (uma necessidade à trama, talvez), é que apesar de Lena ser muito inteligente emocionalmente, isso não a impede de sofrer na mão de homens falhos em muitos sentidos. A personagem guarda uma forma de esperança enferrujada que a faz mergulhar na procura de um homem que caiba exatamente no conceito dela de companheiro. Mas mesmo quando o encontra, não é salva.
Um quadrinho fantástico. A forma como a autora constrói e interrompe diálogos é criativo e inovador. A caoticidade, novamente, perambula por todos os aspectos do livro, mas não se engane, a ordem também é resultado do caos. Não há ponta soltas, não há desconexões arbitrárias, não é o caos por si só, é o caos pela arte, fotografado e exibido como interpretação irregular do cotidiano.
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Texto de autoria de José Fontenele.
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