Com a chegada de uma terrível e persistente chuva, os habitantes flamejantes de Edos partiram para as cavernas, se estabelecendo e criando a cidade subterrânea de Intos. Durante anos e anos a sociedade se organizou por ali sob a égide do Barão, que alegadamente possibilitou ao povo as condições para que a vida nas profundezas da caverna fossem possíveis.
Essa “verdade”, amplamente difundida para a população, sempre foi tida como inquestionável, e o poder do Barão permanecia incontestável, até que o tímido e inquieto Nü, o único rapaz azul no meio de uma cidade povoada por pessoas laranja, começa a desconfiar de que há algo de estranho no ar, e decide investigar. Saltando por entre os telhados das casas de Intos, o jovem acaba descobrindo detalhes inconvenientes acerca do venerado Barão, e passa a ser perseguido pela cidade.
Ao fugir dali para preservar sua vida, Nü salta pelos labirínticos caminhos das cavernas, até descobrir a assustadora verdade: o mundo lá fora está normal, sem chuvas, e o Barão tem usado o medo para manter a população sob seu controle durante todos esses anos.
Partindo para uma jornada de revelação e de contra-ataque diante das mentiras com as quais conviveu durante todos esses anos, Nü se propõe a revelar toda a verdade para a população, mesmo que sua vida seja colocada em risco no processo.
Em uma releitura interessante e criativa do Mito da Caverna, de Platão, Rapha Pinheiro constrói uma narrativa de aventura calcada em uma estética steampunk, com forte teor de crítica social, em uma abordagem que lembra em alguns momentos a aclamada série Bone, de Jeff Smith.
Com grande domínio da narrativa visual, o quadrinista carioca investe em angulações ousadas e opta por um enquadramento dinâmico, alternando entre planos fechados e panorâmicos, dando solidez e identidade para o universo que criou. O uso de cores digitais acrescenta em muito a esse senso de identificação e pertencimento da obra, chamando a atenção em diversos momentos pelo contraste entre as cabeças flamejantes dos habitantes de Intos e as paredes escuras das cavernas. Os personagens apresentam carisma e expressividade marcante, todos bem caracterizados e distintos em cena.
Apostando em diagramações inteligentes, contando com rimas visuais e jogos de sentido através da relação entre forma e conteúdo, Rapha Pinheiro dá consistência e profundidade para a angústia de um Nü, já consciente da verdade, que se vê impotente e frustrado diante da letargia e do medo que fazem com que a mentira do Barão se torne mais confortável para a população do que o inexorável peso da verdade.
Com um roteiro irregular, mas bem amarrado, e uma arte muito interessante, a obra derrapa ligeiramente em suas primeiras páginas, no que se refere à naturalidade do texto. Em um primeiro momento, as conversas soam um pouco artificiais e expositivas, mas logo esse desalinho se ajeita e a trama encontra seu equilíbrio entre texto e arte, comungando os dois eixos da narrativa gráfica de forma coesa e coerente dentro da proposta narrativa.
Com Salto, Rapha Pinheiro apresenta uma história bem planejada e executada, uma metáfora universal com soluções interessantes em sua narrativa visual e apenas algumas inconsistências de roteiro, mas nenhum problema que seja realmente digno de nota.
O encerramento, que inicialmente pode soar apressado para muitos, acaba por ser o fechamento ideal para um conto sobre insurgência e indignação diante das mazelas que acometem o mundo diariamente.
A HQ foi publicada no Brasil pela Avec Editora, em 2017, em capa cartão e com 96 páginas em papel couché de boa gramatura.
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