Resenha | Silicone XXI – Alfredo Sirkis
“Sou viciada pelo Rio de Janeiro […] Preciso da orla marítima, da linha do horizonte.”
Como se já não fosse… curioso explorar um Rio de Janeiro futurista, junto a uma ambientação essencialmente distópica e naves espaciais individuais ao invés de carros de passeio, não é comum uma trama policial estilo Blade Runner na cidade maravilhosa, tal qual uma Las Vegas onde tudo acontece por debaixo dos panos e, quando um absurdo vem à tona, o poder público corre para manter a normalidade das coisas. Impiedosamente criticado nos anos 1980 por seus clichês de propósito (sendo a paródia assumida que é ao gênero de literatura criminal), o excêntrico Silicone XXI mostra-se um dos mais divertidos e inspiradores romances do escritor Alfredo Sirkis, autor de Corredor Polonês, Roleta Chilena e outros livros dos anos 80 que precisam ser redescobertos, graças a sua linguagem tida, ainda hoje, como a frente do seu tempo.
Numa trama super dinâmica, contando com uma fluidez narrativa encantadora e típica do Sirkis, um assassinato muda a rotina chata do aerotel Olympus, um paraíso sexual da elite carioca e brasileira onde tudo é permitido em nome do erótico e seus prazeres. Após matar uma travesti e um robô presente no quarto, o “assassino da arma L” escapa e atrai à cena do crime o famoso inspetor José Balduíno, considerado um dos melhores investigadores da polícia do RJ. E se a primeira matança já não é escandalosa o bastante, o matador parece ter outros alvos sem aparente conexão e muito mais difíceis de pegar do que uma prostituta. E assim, Balduíno se depara desde o começo com um matador feroz e que parece estar sempre à frente da polícia, com uma psicopatia realmente genial – ou amparada por uma sorte imbatível. Mesmo num cenário cheio de micro câmeras e uma tecnologia onipresente para seguir os cidadãos, o “Coringa” do Rio segue fazendo a polícia metropolitana de idiota.
Tarado por loirinhas e experiente em inúmeros casos, o bom e velho Balduíno percebe que não consegue mais pegar ninguém – nem a mulherada que cobiça, nem o psicopata bem dotado que adora transar com suas vítimas antes de liquidar esses corpos que usa, abusa e descarta. Nisso, a credibilidade do inspetor começa a ruir quando o caso vira assunto nacional, se complica sem parar, e tanto a mídia quanto o governo oficializam que o homicida virou o “inimigo público nº 1” do Rio de Janeiro, já que suas vítimas são cada vez mais diversificadas, mas sempre com o sexo agindo como o elemento irresistível que permeia todas essas mortes. Em Silicone XXI, o erotismo e a luxúria pingam das páginas sem pudor algum, personificado com um humor sádico e nos detalhes mais sórdidos desde os robôs sexuais, já aceitos pelas pessoas e presentes em orgias entre homens e máquinas, até toda a sacanagem (física e moral) que pode rolar, e de fato rola, nos lugares paradisíacos da capital carioca.
Com uma serenidade quase cínica e constante, Sirkis une um erotismo latejante com o desejo que carregamos, insistentes, em vislumbrar um futuro tecnológico cheio de avanços, e perturbado pela desumanidade que quebra essa aura e esse sonho talvez impossível de progresso absoluto, humano ou científico. Em 2019, nesse cenário ultramoderno imaginado por um oceano de escritores de ficção científica do passado, a humanidade ainda não melhorou em nada, e a essência das pessoas continua a mesma – sempre guiados e alienados por nossos instintos naturais e pouca racionalidade, mas o romance está longe de ser uma crítica ao indivíduo e o coletivo. Por isso mesmo, o incorruptível detetive Balduíno, um dos clichês parodiados por Sirkis até mesmo por ser criolo para quebrar esse arquétipo de detetives brancos, é o protagonista perfeito para o romance, unindo tudo aquilo que faz do ser-humano um animal muito complexo, nesse cenário tropical e falsamente utópico.
Evitando a gratuidade das polêmicas ou escatologias, Silicone XXI satiriza esse tesão idílico pelo progresso a ser conquistado, e também encarna essa sátira nos próprios desejos sexuais e profissionais de Balduíno e seus aliados de investigação, frustrados porque não há perfeição possível numa vida ou numa cidade regida por homens cheios de ambições e contradições. A ameaça do “assassino da arma L” (tarado em usar sua pistola de raio laser nas vítimas) é a desculpa perfeita para Sirkis desdobrar o seu primeiro roman noir que se leva a sério na medida certa, e se ironiza sem vergonha no decorrer de curtos e enxutos capítulos – ainda que se perca em uma série de esclarecimentos descartáveis em ‘Ramon’, a última parte de um livro cujo atmosfera é estruturada em suspense. Vale lembrar que a maioria da crítica literária, ainda em 1985, revelou-se puritana na época, bem aquém às questões levantadas por Sirkis. Eis o crítico supremo, o tempo, saudável as boas e grandes obras, e aos vinhos, também. Não vamos esquecer dos queijos.