Crítica | Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2009)
O mundo é um lugar terrivelmente perigoso para aquele que não detém poder, seja do domínio físico, financeiro ou social. Dentre todas as minorias, a adição de um cromossomo X é capaz de tornar o indivíduo ainda mais propenso a toda sorte de violências, físicas e morais. O principal olhar a que o diretor Daniel Alfredson se volta é o da mulher como objeto dos desejos do mundo, e coloca o homem como potencial causador de danos. Isso é claro e reflete boa parte da realidade, onde a violência doméstica é uma realidade na vida de tantas meninas, e onde o assassinato é “uma consequência natural do estupro”.
Baseado na obra literária de Stieg Larsson, Os Homens que não Amavam Mulheres (de Niels Arden Oplev) é o primeiro de uma trilogia de filmes policiais muito bem-sucedidos em amarrar as vidas de seus dois protagonistas, Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), em uma trama de mistérios e dramas do passado sem jamais sugerir um abuso de coincidências, ou carregar um excesso de bagagem. A obra desenvolve seus personagens secundários em cima de estereótipos conhecidos e, mesmo aqueles que pouco aparecem, quando surgem, motivam o desenvolvimento da história.
Traumas do passado são estabelecidos em flashbacks inseridos de forma inteligente para que o espectador conheça Lisbeth apenas o quanto Mikael a conhece, e apresentando a quem assiste as mesmas conexões emocionais que o jornalista tem com a hacker: a paixão. O repórter idealista é fascinado por seu trabalho e sua função na sociedade, e desta forma aceita ajudar o industriário Vanger a encontrar sua sobrinha Harriet, morta há mais de 40 anos, em meio a uma trama de conspiração e abusos. Inicialmente relutante, o mistério o provoca e convida Lisbeth para uma parceria, bem como ao envolvimento emocional. Enquanto isso, a hacker Lisbeth torna-se a representante máxima das mudanças de um mundo complexo e objetificante, pois ela é antes de tudo uma apaixonada. De acordo com Aristóteles, paixão é a falta daquilo que se quer, pois logo que se tem não há mais espaço para a paixão, apenas para o dia a dia e para a monotonia. E desta forma Lisbeth interessa-se mais por mistérios do que por pessoas, abandonando ambos assim que sejam dissolvidos ou saciados.
É um filme sintético em todas suas características, e usa-se disso para resolver de forma coerente o desfecho do repórter Mikael e do mistério, que para muitos pode soar menos impactante do que deveria. Falta, porém, um fechamento melhor para Lisbeth Salander que, apesar de ser o real fio condutor e a síntese de toda trama, sai assim como veio. O motivo disso é a forma como o filme se monta sobre uma trilogia, esperando para desenvolver outros aspectos da personagem em algum outro momento. Neste ponto, a versão americana, de David Fincher, se mostra melhor sucedida no retrato dos dois protagonistas, fazendo com que as pequenas mudanças da trama ou detalhes de suas jornadas trabalhem mais em função de Lisbeth e seu arco-íris de emoções, tão complexo em sua formação, mas primário na forma como se expõe.
Com uma fotografia mais quente do que se poderia esperar, o longa prefere utilizar-se da cenografia para dar às paisagens suecas o tom inóspito e potencialmente perigoso que a narrativa exige. Em Estocolmo, personagens são sufocados pela simples proximidade de pessoas; já na ilha onde ocorre boa parte da trama, a solidão é desoladora, e mesmo a mínima cabana que age de quartel general para as investigações da dupla mostra-se maior em seu interior do que exteriormente. Ao olhar em volta, tudo parecerá longínquo, trabalhoso e misterioso demais. Esta cidade fantasma ressalta a ideia de que somente pessoas com motivações prioritariamente introspectivas seriam capazes de se atrair por qualquer coisa que resida sob aquela neve e segredos.
Reprimida por aqueles que a rodeiam, Lisbeth torna-se uma pessoa agressiva e de difícil convivência, e encontra em seus processos mentais um ponto de fuga para a gigantesca pressão do mundo em lhe frustrar e machucar. Eis que então o sexo é outra constante na trama, especialmente por ser um ato polissêmico, de natureza complexa, porém de fácil aplicação, capaz de atuar como barganha, método coercivo e compensação afetiva, que exemplifica a forma como age o sexo na mente daquele que é violentado.
Enquanto para o autor da violência o ato não passa de alguns segundos dentre toda uma vida, para quem sofre da violência é um ato que persegue e assombra. Não à toa, vítimas de estupro relatam duvidar da veracidade do ato, colocando a violência para dentro de suas mentes, aceitando posições de inferioridade e trazendo pra dentro de si dragões que lhes rasgam ao sair.
Velado, latente e introspectivo, o machismo é uma condição não aparente que desperta uma forma corrosiva de convivência onde a moral está no centro do jogo. É permitida a quebra da moral (resumida naquilo que se faz em seus porões, longe da vigilância do mundo), não a quebra da aparência, pois a aparência é essencial para o prejulgamento social. Enquanto emoldura o violento em um quadro como uma caricatura fascista, ajuda a esconder os demônios pessoais que a sociedade compartilha ao fomentar, mesmo que com palavras, todo tipo de misoginia, discriminação e violência.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.