Resenha | Daytripper
Graphic novel produzida pelos brasileiros Fabio Moon e Gabriel Bá (10 Pãezinhos, O Alienista), Daytripper foi produzida para o selo Vertigo. Publicada em 10 volumes, cada um deles explora uma idade da vida de Brás de Oliva Domingos, um escritor que tem seu passado e futuro expostos nas páginas da publicação. A fim de reproduzir um pouco do caráter da obra – em um humilde esforço de análise – a resenha a seguir é dividida em capítulos, como na publicação original.
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Brás é um escritor inseguro e nada otimista que divide seu tempo entre seus escritos e devaneios de sua mente – cada vez mais frequentes com o passar dos dias. Sempre subjugando o exercício de criatividade que deveria exercer. Sua função no jornal em que trabalha é tratar dos obituários, o que faz com que esteja habituado a lidar com a morte todos os dias, indagando-se sobre suas motivações. Quando era jovem, tencionava viver aventuras e escrever sobre a vida, mas seu ofício faz com que seu destino se encurte – o paralelo com Shakespeare é válido mais pela tragédia do que pelo talento, existente ou não de Brás – até então.
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A juventude é mostrada em Salvador, com Brás sendo confundido com um gringo, até que seu amigo Jorge lhe expõe o óbvio: para os nativos, o escritor era de outro planeta, o planeta dos brancos. Seu contato com Olinda – uma belíssima mulata – é por si só uma demonstração do culto a Iemanjá. Uma viagem à celebração do orixá que passa uma aura de mistério e evidencia o caráter sincrético da cidade. Além de louvar a vida, a entidade é capaz de dar e retira-lá.
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Dessa vez, é mostrado Brás se separando da mesma Olinda da história anterior. A personagem mudou de forma abrupta nesses sete anos, evidenciando que as transformações das pessoas podem ser muito drásticas, mesmo aquelas a quem o homem diz conhecer. Amenidades podem facilmente se transformar em ódio e desprezo. Moon e Bá brincam com o vazio da vida moderna, e o quanto a gama de produtos enlatados coloridos só serve para distrair e esconder a sua típica obsolência. No entanto, o personagem (o homem) valoriza a efemeridade do momento, o breve instante pode ser mágico e gerar no futuro uma lembrança boa, de que viver valeu a pena.
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Brás tem o seu primeiro filho no mesmo dia em que seu pai falece – mais uma vez a ideia da vida e morte é ressaltada, o Divino dá e retira a existência. Quando o pai finalmente parte, sua presença torna-se gigantesca e preenche o imaginário do filho. Não só pela figura amorosa que ele certamente era, mas também por suas imperfeições, simbolizadas por sua filha bastarda, além de fonte de inspiração e figura de mentor.
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As multividas e multimortes de Brás são apresentadas tendo a emoção como ponto de partida. Na edição, acompanhamos a infância do Pequeno Milagre: sua intimidade infante e um amor inocente e sem cobranças que marcou para toda a vida, mesmo que tais momentos tenham sido curtos.
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O registro da queda do avião é belíssimo. O vermelho do fogo toma todo o quadro, mostrando que o elemento consumira tudo, com um poder praticamente infinito. O ocorrido explora o real acidente do voo da Tam, ocorrido no aeroporto de Congonhas em 2007. A possível perda de Jorge faz Brás trabalhar com muito mais afinco nestes obituários, imprimindo maior emoção que o habitual, transparecendo seus próprios sentimentos. A sensação da perda comove.
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Brás finalmente lança seu livro, mas ainda se mantém inquieto por não saber do paradeiro de Jorge. Mesmo com as reclamações de sua esposa, parte para buscar o amigo e encontra mais um fim, dessa vez trágico, pelas mãos de quem ele amava.
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Brás torna-se uma entidade, está em todo o lugar mesmo não estando. Sua presença está na ausência de seu ser e as poucas participações acontecem por meios digitais e eletrônicos, se tornando para sua família o que Benedito era para o filho. O leitor também compartilha a sensação de ausência.
Sonho
“Ninguém gosta da morte, mas goste ou não, todo mundo morre um dia!” – Brás precisou encarar um emprego medíocre – aos seus olhos – para entender o sentido real da vida. A morte habita seu sonho e, mesmo arquiteto e escritor da própria história, não pode se esquivar do fim em seu mundo imaginário.
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A iminente morte que tem no câncer seu avatar não mais assusta. Brás abraça seu destino, esperando-o ansiosamente ,e nega o tratamento que poderia ampliar seus dias para não estragar os últimos momentos. O fumo e escrita, antes interpretados como maldição hereditária, se tornam verdadeiras heranças de Seu Benedito. Um final emocionante com as últimas palavras do pai encontradas em uma carta, escritas na época em que Brás ganhou um filho. Coincidindo – sem a menor coincidência – com o que Brás entendia ser o final de sua vida, aceitando a morte para homenagear sua deusa e entregar-se ao infinito como oferenda.
Nada é mais belo que o mar, esperando o sacrifício do artista, o último suspiro e a última lembrança dos olhos que observaram a tão bela jornada que viveu e exerceu. Daytripper é um arroubo de emoção e uma das obras mais tocantes feitas na nona arte.
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