Crítica | A Mesa do Diabo
Tem filmes que começam muito bem, e nos enganam logo nos primeiros minutos. Esse é o caso de A Mesa do Diabo (The Cincinnati Kid), título brasileiro apelativo que remete a algum filme de terror. Após um magnífico começo, contextualizando o perigo compulsivo e o drama de se apostar na sorte, acompanhamos um jovem jogador de pôquer, Eric Stoner, pelos caminhos tortuosos do vício, dos esquemas de mesa, da brincadeira com o azar na qual é muito popular entre os outros jogadores. Tudo nos primeiros 15 minutos. E o que promete ser um ótimo estudo de personagem (quase dirigido por Sam Peckinpah), perde-se de repente em subtramas rasas, sem estilo, e que apenas enfraquecem a ótima trama central, ou seja: a sobrevivência de um malandro de olhos azuis em um covil de lobos, alguém que só conhece a trapaça como único modo de vida.
Curioso como o diretor Norman Jewison opta pelo drama multifacetado, cada vez mais desinteressante e descentralizado do personagem principal, aqui defendido por um Steve McQueen mais quieto do que nunca, quase sem presença – um grande carisma fingindo ser introvertido, mas devido ao talento do ator, sempre funciona em tela. Graças a sua fama nesse submundo de desafios inebriantes que os jogos clandestinos oferecem, o seu Eric Stoner é convidado a enfrentar uma lenda do pôquer (o igualmente lendário ator Edward Robinson, um monstro sagrado da era de ouro de Hollywood) em troca do tudo ou nada. O que poderia ser um poderosíssimo conto de ambições , torna-se um drama à beira do esquecível, ainda que com duas ótimas cenas que representam toda a tensão, a libido e a ganância que envolve uma mesa recheada de grandes ou terríveis possibilidades – a inteligência dita o jogo, apenas. E o karma, real, quase físico.
Baseado no romance homônimo de Richard Jessup, eis aqui um retrato pouco ousado, cinematograficamente charmoso, e (semi)glamourizado deste submundo do carteado, em um cenário urbano decadente de uma América fria dos anos 30, em Nova Orleans, cheia de homens sem muito a perder (será mesmo?), já que poucos conservam a própria alma e os que ainda a tem esperam a chance de trocá-la por alguns milhares de dólares. Jewison comanda seus atores sem exigir muito, o que ajuda também a Mesa do Diabo a ser um dos filmes mais desnecessários da carreira de McQueen (Caçador Implacável) e do gigante Robinson (Pacto de Sangue) em seu penúltimo filme.
Obra feita para jogadores de pôquer? Sim, até a medula, mas deve-se dialogar com todos os públicos através do bom gosto, do entretenimento, e/ou de uma possível sofisticação na linguagem. Ademais, se havia alguma intenção de seduzir não-jogadores a esse mundo, aqui essa ideia rapidamente escorregou para debaixo da mesa.