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  • Crítica | Attila Marcel

    Crítica | Attila Marcel

    Attila Marcel 1

    A dificuldade em se expressar, representada pela mudez do protagonista, tem efeito de comparação, de como a modernidade aos poucos tornou a comunicação algo cada vez mais raro de ocorrer de modo pleno. Attila Marcel é um filme francês que conta a história do jovem Paul (Guillaume Gouix), um rapaz que, pela orfandade, foi obrigado a crescer longe dos seus, criado pelos tios. Sua voz não é emitida devido ao trauma de ter visto seus progenitores morrerem, de modo que suas expressões são concentradas no som que as teclas de seu piano fazem.

    Os dias comuns do protagonistas são registrados com cores vivas, cuja paleta salta aos olhos, causando um estranhamento primário, ainda que a adaptação ao clima lúdico seja rápida. Notável perceber a afabilidade com que Paul é tratado por seus parentes, cada um mais excêntrico que o outro, mas todos bastante prestativos ao promissor pianista, tomando cuidado em presenteá-lo de modo único, com dotes preciosos e condizentes com a identidade de cada um deles.

    Ao olhar uma foto de seus pais, o juvenil não esconde as pálpebras avermelhadas, sinal de um possível choro, que não chega graças à sua especial condição de se conter o tempo inteiro. Seus devaneios incluem a queda de percepção e desmaios involuntários. É desacordado que o pianista tem acesso às suas memórias reprimidas, dos tempos que era ainda bebê e do pouco contato que teve com seus pais. Desde cedo, faz uma enorme cobrança de si, com expectativas de que ele se torne um musicista de muito talento.

    A mudez do personagem principal torna-se um evento ainda mais curioso pelas cenas musicais presentes nos flashbacks inconscientes que ele experimenta. O fechamento desses momentos é realizado quase sempre pelo olhar de seu pai, Attila Marcel, vivido também por Gouix.

    A pessoa que mais se aproxima de compreender plenamente o músico é sua vizinha, Madame Proust (Alle Le Ny), que tem em comum com Paul o amor pela música, executando de modo rudimentar um pequeno instrumento de corda, tendo nas ervas a sua válvula de escape e o primeiro catalisador das ilusões de Paul. Seu jeito de feiticeira da natureza a aproxima de um arquétipo rpgístico de Druida, o elfo próximo da natureza que lança mão de psicotrópicos naturais e adora os sons da fauna e as entidades das matas. No caso de Proust, a crença é em Buda. Sua casa é repleta de plantas penduradas, fator que insere o público em um ambiente semi-fantástico sempre que a câmera passa por seus cômodos.

    Logo, as viagens levadas pelas ervas revelam o motivo de todo o receio de Paul, exibindo uma triste realidade, escondida no mais profundo de sua alma, um lugar que ninguém ousa pisar ou tocar. Quando ainda era um bebê, variava entre as brincadeiras infantis, e seus programas de cunho educativo, e a violência doméstica, que o reduz, já adulto, a um estado de impotência atroz.

    Após um apelo por escrito, Paul se vê diante de um novo paradigma, a inexorável opção – quase obrigação – de viver sua vida. Mais uma vez, ele se insere no campo do inconsciente, onde fantasia um misto de luta de boxe com tango, protagonizado por seus pais, em que a mulher tenta retribuir com afeto os maus tratos e golpes físicos de seu parceiro. O resultado final não fica claro, se seria aquela a realidade ou mais um autoengano.

    Com o tempo, os surtos pioram, fazendo o rapaz ter alucinações mesmo acordado, especialmente após começar uma grande apresentação sem poder contemplar Proust na plateia. A sensação de estar sozinho mais uma vez faz com que ele relembre a verdade, de como seus pais faleceram. Após ter contato com a realidade, o tampo do piano cai sobre seus dedos, encerrando ali a sua carreira musical, enterrando os sonhos de suas tias e o principal modo de expressão do musicista, mas sem lamentos por nenhuma das partes. Resignada, a família recebe a notícia quase como uma punição por seus maus atos.

    A reviravolta envolve a sentença da impossibilidade de Paul ser um pianista. Sua reinvenção começa de dentro, logo depois de assistir a sua antiga amiga em no túmulo. Dela, ele tira forças e inspiração para se reinventar, munindo-se do mesmo instrumento que a mulher, o que o fez revolucionar seu modo de ver o mundo e de “musicar”, preparando-o emocionalmente para o papel de pai e marido, algo que refugava o filme inteiro. O ciclo se fecha, e de modo belo, muito bem pensado por Sylvain Chomet.

  • Review | Les Revenants – 1ª Temporada

    Review | Les Revenants – 1ª Temporada

    CANP_1210059_REVENANTS_COUTEAU_SS_DATE_Abribus.indd_NjpgEm uma cidadezinha (convenientemente sem nome) no interior da França, dominada por uma barragem, algumas pessoas que morreram há anos reaparecem como se nada tivesse acontecido. Pessoas de várias idades, falecidas em épocas diversas, que pretendem continuar suas vidas do ponto em que pararam e se reintegrar ao meio em que viviam. Ninguém sabe por que voltaram e por qual motivo especificamente essas pessoas retornaram. Enquanto isso, a cidade enfrenta alguns eventos incomuns: quedas de energia inexplicadas, diminuição do nível de água do reservatório, animais mortos no lago.

    A série é uma adaptação do filme homônimo dirigido por Robin Campello e, à primeira vista, parece ser um mix entre 4400 e The Walking Dead – ou qualquer série sobre zumbis. Mas é bem mais que isso. Não há qualquer explicação sobre o que fez essas pessoas retornarem e, diferente do que se pensaria, este não é o foco. Assim como em In The Flesh, o roteiro se concentra na experiência de cada um dos “revenants” (os que voltaram), em sua dificuldade de entender e aceitar a situação atual, como também a de seus familiares e conhecidos.

    O primeiro episódio consegue envolver o público desde o princípio, iniciando praticamente in media res, com um acidente de ônibus durante uma excursão escolar. Sem qualquer dica para o espectador sobre o que houve, vemos a adolescente Camille (Yara Pilartz), que estava no ônibus, se apressando em voltar para casa. Sem exageros dramáticos nem histrionismo, a paleta azulada, a fotografia primorosa e a trilha sonora (sob responsabilidade dos escoceses do Mogwai) complementam a intensidade do roteiro, gerando um clima claustrofóbico e tenso. A falta de quaisquer explicações nos episódios iniciais é bem aflitiva, mas o roteiro consegue manter a fluidez da narrativa, atingindo plenamente o objetivo de fazer o espectador ficar curioso o bastante para continuar assistindo.

    Cada episódio leva o nome de um dos que voltaram – não se atendo apenas a ele -, e o espectador fica sabendo, aos poucos, o que aconteceu aos personagens, em que circunstâncias morreram e quais as conexões entre eles. Os flashbacks não são excessivos e estão inseridos de forma bastante orgânica, geralmente no início dos episódios, não prejudicando o ritmo e a evolução da narrativa. E, sim, a exemplo de Lost, é possível montar uma rede de relacionamento conectando os personagens “mortos” e vivos entre si.

    Um dos atrativos da narrativa é esse: ir descobrindo em que grau e de que forma os personagens estão relacionados. Por exemplo, Julie (Céline Sallette) é uma enfermeira que foi atacada por um serial killer – Serge (Guillaume Gouix), um dos que voltaram. Ela acolhe Victor (Swann Nambotin), outro revenant, que foi morto há 35 anos junto à sua família pelo comparsa de Pierre (Jean-François Sivadier). Este, agora um religioso, é parceiro de Claire (Anne Consigny), mãe de Léna (Jenna Thiamcomo) e Camille, que morreu há quatro anos. E, à medida que a trama avança, essa rede vai se tornando ainda mais intrincada.

    O elenco é algo que vale ser destacado. As atuações são concisas e contidas, transmitindo emoções em pequenos gestos, olhares, frases interrompidas. Destaque para Céline Sallette – a vida de Julie parece pesar-lhe nos ombros – e Swann Nambotin – em alguns momentos, Victor chega a ser sinistro em seu silêncio.

    Se há alguma ressalva a ser feita é quanto ao desenrolar dos dois episódios finais. Alguns fatos parecem ter sido jogados sem qualquer cuidado em introduzi-los de modo a fazerem sentido no contexto. Lembra alguns filmes em que, faltando quinze minutos para o final, o roteirista percebe que tem de explicar tudo e amarrar todas as pontas deixadas soltas no decorrer da história. O ritmo da história sofre com essas inserções. Além disso, perde-se força narrativa ao serem adicionados, sem mais nem menos, elementos místicos e religiosos ao clima de mistério.

    Texto de autoria de Cristine Tellier.