Resenha | Demolidor: O Diabo da Guarda
Eis uma figura que deveria ter muito mais popularidade do que conseguir angariar, tanto na Marvel quanto na cultura pop, até hoje. Mas é claro que, quando se é uma das criações de Stan Lee e Jack Kirby, é difícil se sobressair entre as estrelas Homem-Aranha, X-Men, Thor e Os Vingadores. Mesmo assim, a fama do advogado Matt Murdock ganhou força com a excelente série da Netflix que o apresentou a novos públicos, já que não devemos nem lembrar do terrível filme de 2003 – que fez tão bem ao personagem, quanto Batman & Robin fez ao Homem-Morcego. Altos e baixos a parte, fato é que o advogado cego que caça criminosos no bairro Cozinha do Inferno em Nova York, uma cidade quase tão desoladora e violenta quanto a Gotham da DC, vive entre a cruz e a caldeirinha, encarnando com seu uniforme vermelho e seu comportamento impiedoso de justiceiro o próprio conceito de bem e mal que todo ser humano leva, em seu coração. O problema é que, em O Diabo da Guarda, surge algo para testar a fé até mesmo daquele apelidado de “O Homem Sem Medo”.
Ao colocar em cheque sua alcunha de “herói”, o Demolidor encara seu pior inimigo: um bebê. Inesperadamente colocado sob a sua tutela, vem com a criança a certeza absoluta que ela é o Salvador, aquele que voltará a Terra para espalhar a paz e a harmonia quando tudo parecer perdido. A cargo de sua responsabilidade, chegam novos boatos de que o infante é, na verdade, o anticristo disfarçado para conceber o caos, e a destruição total acima de todos. A confusão não apenas se alastra no coração do Demolidor, mas em suas relações também, pois uma decisão deve ser tomada: matar o inocente, ou esperar ele crescer educando-o para trilhar o caminho do bem? O herói então é mergulhado em uma paranoia arrebatadora, e toma ares de anti heroísmo ao ter que defender o possível Satã, dormindo em seus braços, de todos que representam uma possível ameaça ao “sono dos anjos”. Neste conflito, uma organização religiosa aparece para reclamar essa entidade demoníaca em forma de bebê, e quando lhe é negada a criança, tudo piora ainda mais.
Quando Kevin Smith foi para a Marvel, em 1998, a desculpa que o diretor de O Balconista tinha lhe garantiu um arco só dele do Demolidor. Assim, o herói ganhou pelas mãos de Smith uma profundidade que só um fã apaixonado pelo personagem, e verdadeiramente imaginativo seria capaz de alcançar, temperando com o inferno e o paraíso os passos de um homem atormentado cujos poderes rivalizam, nas palavras do próprio Stan Lee, com o sentido-aranha de Peter Parker. Na aclamada série O Diabo da Guarda, somos inseridos numa corrida contra o tempo que faz o Demolidor duvidar de seus aliados mais próximos, devido ao desespero do fim do mundo, e da morte dos que Matt realmente ama (o fim do mundo dele, também). De repente, ninguém é mais confiável, mesmo sendo capaz de se ouvir um batimento cardíaco a quarteirões de distância, e detectar a mentira na voz de alguém como se fosse o som de uma bomba atômica na esquina. De repente, o mundo que já era de incertezas se torna o inferno na Terra para aquele que, um dia, foi louco o bastante para ousar limpar as coisas.
Com participações especiais do Dr. Estranho, Homem-Aranha e até da Viúva Negra, a quem Matt mantém aquela paixão platônica de adolescente (e a ele é retribuída), temos aqui um arco de histórias que arrastam o Demolidor ao sete círculos da danação, ainda vivo, numa verdadeira crise existencial que, para quem a vive, parece interminável. Nos anos 1990, o ritmo das histórias em quadrinhos mudou drasticamente, e a leitura de fato ficou mais ágil e dinâmica, mais sombria e cética também, nesse período pós-Watchmen e O Cavaleiro das Trevas. Smith entendeu isso de uma forma muito engenhosa, e contando com desenhistas do naipe de Joe Quesada e Jimmy Palmiotti, tratou de rejuvenescer uma personagem fascinante (em uma época que a editora Marvel estava falindo), atribuindo novos contornos, dilemas e tentações a um clássico herói cuja mitologia já foi estabelecida há décadas, e mesmo assim, foi tanto homenageada quanto fortalecida em O Diabo da Guarda, até a grande revelação final. Poucas vezes, o Demolidor pareceu tão interessante – e tão vulnerável e humano, quanto aqui. Stan Lee certamente ficou orgulhoso.
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