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  • Crítica | O Diário de Anne Frank

    Crítica | O Diário de Anne Frank

    A versão de George Stevens para O Diário de Anne Frank tem um desenrolar lento e gradual. Os créditos iniciais primam por uma normalidade que não poderia ser mais irreal, mostrando pássaros no céu enquanto uma música instrumental é tocada, como se aqueles fossem dias comuns, uma vez que a natureza não se curva aos  desígnios humanos sejam eles quais forem, sejam os homens poderosos ou não.

    Na casa dos Frank há um lamento, por que algo sumiu dali, um livro diário, que é encontrado após as pessoas que lá chegaram procurarem bastante.  Curiosamente, o escrito não estava em um lugar inacessível, e sim bem a frente dos que procuravam. As pouco menos de três horas de filme seriam baseadas na leitura daquelas palavras de intimidade, da personagem-título feita por Lea Van Acken, que datam a partir do ano de 1942 quando o III Reich já estava estabelecido como dominador da Alemanha e como potência mundial, elevando a bandeira do nazi-fascismo ao patamar de parte do governo e ideologia de uma das potências do velho mundo.

    Há uma exploração gradual do dia a dia da menina, que até os momentos iniciais, não tinha muitas privações. Ela vivia uma vida simples junto com os outros Frank, mas não havia grandes necessidades que não fossem supridas, fora o óbvio fato dela não poder sair muito de casa, com receio de ser atingida ela e sua família pela guerra e obviamente de serem perseguidos por sua condição religiosa e de origem, que era judaica. O filme consegue ser sutil em muitos momentos, mas também não tem medo de apelar para a fobia dos personagens. Anne acorda subitamente a noite, com um pesadelo de que seu esconderijo era invadido e todos seriam consequentemente violados.

    É estranho verificar  a guerra como um evento visto a partir dos olhos de uma moça, que mal pode se aventurar em seu quintal. O conflito visto pelas janelas ou pelas frestas da casa causam uma falsa ilusão de que estavam longe da pólvora e do ódio provindo dos alemães que tomaram a Holanda, e essa situação casa perfeitamente com a também falsa sensação de normalidade em possíveis tomadas de poder de extremistas de direita. Os Frank eram cativos em seus próprios domínios assim como boa parte dos povos são reféns de governantes que pensam mais em seus próprios interesses  e em seus próprios dogmas e moralismos mesquinhos. A realidade não é tão distante, considerando obviamente que a o visto no livro/filme já é um estado de exceção bem avançado.

    Um dos maiores simbolismos dentro do longa, leva em conta curiosamente um livro bíblico não presente na Torá, que são os manuscritos sagrados dos judeus. A cena envolvendo um ladrão emula bem a parábola do retorno do Messias, que é dito que chegaria de surpresa como um ladrão na noite, no livro profético do Apocalipse de São João. Esse pequeno momento sincrético entre judaísmo e cristianismo é muito bem encaixado, principalmente por que para os semitas, esse era um período bem semelhante ao fim do mundo como era dito no livro das revelações.

    A vida de Anne é triste não por conta apenas da questão da perseguição a si e a dos seus motivada claro pela intolerância, mas também porque ela não consegue viver sua vida de maneira plena, sem ser prisioneira. Mesmo quando ela está prestes a viver um amor, ela deve faze-lo embaixo de seu teto, ao lado de seus pais e parentes, sem direito a privacidade sequer para conseguir um par para ser seu futuro noivo.

    O modo como os traumas aos judeus foram causados reúnem elementos mais explícitos e outros ligados ao surrealismo do cinema alemão clássico. É incrível como a mistura de influencias se da até com a arte cinematográfica que  foi praticamente sepultada após a chegada de Adolf Hitler ao poder na Alemanha.

    Os momentos finais tem outra curiosidade com mistura, uma vez que fala a respeito de uma violência sofrida pelos Frank, mas que não foi exatamente descrita por Anne, já que se imagina que ela sofreu tudo aquilo em seus últimos momentos de vida, e não pôde registrar exatamente o que lhe ocorreu. O Diário de Anne Frank traz uma boa versão do famoso livro homônimo, é tocante, sentimental, muito bem filmado e atuado em mais um filme de caráter bem épico de Stevens, se não tão forte como Assim Caminha a Humanidade, ao menos é bastante forte e distinto.

    https://www.youtube.com/watch?v=b4C0taJ39zA

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  • Crítica | 14 Estações de Maria

    Crítica | 14 Estações de Maria

    14 Estações

    Uma classe de catecismo liderada pelo padre Webber (Florian Stetter), um devotado e atencioso homem que passa seus ensinamentos católicos para os infantes. Este é o primeiro cenário educacional e formador de caráter de Maria (Lea Van Acken), a protagonista da jornada vista no filme do alemão da Bavaria Dietrich Bruggemann, que insiste em posicionar sua câmera de maneira contemplativa, com um plano americano focado em uma mesa, em estilo semi-documental, oprimindo seu espectador como o jovem padre faz ao impor suas verdades e crenças para as incautas crianças.

    A realidade da Fraternidade São Pio XII tem na rigidez dos preceitos e no discurso militar de seus fiéis sua base, mesmo que o caráter destes ainda não esteja formado. Seu ideário fundamentalista religioso entra em conflito com praticamente todos os aspectos normativos da modernidade, e todos os movimentos visam integrar os atos dos personagens com caricaturas de pinturas bíblicas famosas. O roteiro é dividido em estações, como os atos teatrais, cada uma mostrando uma faceta do cotidiano de Maria, em busca de um destino dos mais comuns, ao menos em tentativa.

    O texto de Dietrich e Ann Bruggerman é verborrágico, não por conter diálogos estupendos, mas por ser uma história narrada através das muitas conversas de conteúdo constrangedor que oprimem e humilham Maria na maioria dos eventos. A partir de um momento, ela mesmo reproduz tais diálogos inquisidores, acusando conceitos cotidianos de sofrerem influência satânica e demoníaca, mesmo em ambientes distantes de sua paróquia, como em sua escola, no convívio com outros pré-adolescentes.

    Logo, os adultos à sua volta começam a discutir os métodos e escolhas que Maria fez para sua vida. Sua mãe é a figura de pai/patrão, como no clássico dos irmão Taviani. Sua postura autoritária recalca a menina, aumentando o escopo de proibição a níveis cada vez mais absurdos, massificando a sensação de isolamento. Já na escola, seus professores a indagam sobre os diálogos que trava com seus colegas, sempre remetendo a pactos e eventos ligados ao diabo. Em um ambiente “normal”, ela se sente coibida, tornando-se tão passiva e agressiva quanto os que passam sua fé a ela, reclamando da constante exacerbação do pecado e da banalização da santidade.

    A renúncia ao carnal, e consequentemente a qualquer impulso de vontade própria, é o norte da jovem, mesmo antes dela ter ciência real dos votos que faz. A massificação do fundamentalismo é mostrada detalhadamente, esmiuçada pelo inquisitivo pelo realizador, que não guarda pudores ao mostrar o processo de canonização de humanos ainda em formação.

    À medida que os estágios avançam, a credulidade cega faz condenar a curta existência de Maria, pautando-se na paranoia cristã, pontuada no cúmulo da interferência do padre dando uma hóstia para a menina enquanto ela convalescia, atrapalhando todo o processo. A misteriosa enfermidade parece ter mais causas em desgosto e sem sentimentos vãos do que uma raiz científica.

    A entrega de Maria é semelhante a de sua figura heroica, que se rendeu aos desígnios divinos para espiar os pecados da humanidade. No entanto, o sentimento presente na despedida da personagem-título vem para culpar e não perdoar, tudo através do silêncio e da métrica lenta do filme, características que são fruto da agonia desesperadora da protagonista, que nem em seus últimos momentos tem alívio e liberdade para viver como quer. 14 Estações de Maria é um interessante exercício narrativo que usa os aspectos estilísticos para maximizar o drama de sua heroína, remetendo ao inexorável destino do qual foge, comum a muitos dos escravizados pelo julgamento religioso.