Resenha | Justiceiro: No Princípio
Em Táxi Driver, Martin Scorcese apresentou ao mundo o clássico Travis Bickle, ex-combatente na Guerra do Vietnã que, transtornado pelas mazelas com as quais se deparou na cidade de Nova York, acaba adentrando em uma espiral de violência e insanidade, em busca de uma “limpeza” para a cidade em que vive. Mas por qual motivo estamos falando de Taxi Driver em uma resenha sobre uma história em quadrinhos do Justiceiro? Pois bem, vamos lá.
O Vietnã representou uma derrota colossal para o orgulho norte-americano, e deixou marcas profundas nos soldados que lá serviram e conseguiram retornar para casa. O cinema e os quadrinhos muitas vezes já trabalharam a partir desse conflito, e Garth Ennis, notório pesquisador sobre guerras e reconhecido escritor de histórias do gênero, foi brilhantemente cirúrgico ao utilizar o conflito como pano de fundo para sua abordagem com o trágico e violento Justiceiro.
Capitão dos fuzileiros navais durante a Guerra do Vietnã, o veterano e herói de guerra Frank Castle retorna do conflito diferente de quando lá chegou. Há algo nele, escondido em seu interior, ansiando por violência, uma sede de sangue que em muito lhe ajudou dentro do país asiático. Em 1976, contudo, Frank Castle se depara com o evento que mudaria sua vida: a morte de sua família, durante um piquenique no parte, por engano durante uma briga de mafiosos. Ali morria Castle, espiritualmente, dando lugar para sua sede interminável e insaciável por vingança, personificada pelo Justiceiro.
Travis Bickle e Frank Castle retornam para Nova York extremamente afetados pelo que viveram no Vietnã e, por motivos distintos se colocam no papel de “agentes de limpeza”, diante do crime e de tudo aquilo que consideram errado no mundo. Contudo, se a sanha violenta de Bikle dura por um breve período de tempo, a sede de punição de Castle já dura décadas, e aí mora o cerne da tragicidade por trás da ideia do Justiceiro: Frank Castle jamais terá a expiação de seus traumas, sua família jamais voltará à vida, e sua guerra ao crime jamais terá fim. Eis um homem cuja missão jamais será completada.
Em sua batalha de um homem só, Castle se afundou em seu luto, em sua necessidade de vingança, de encontrar alguma lógica, alguma missão redentora, na trágica morte de sua amada família. Diante de todo esse caos, o homem chamado Frank cedeu cada vez mais lugar para que o Justiceiro pudesse “fazer o que tinha de ser feito”, e se perdeu de forma irremediável. O Vietnã, para Frank, jamais acabou realmente, e sua sobrevivência, sua mera existência, não tem mais sentido, senão enquanto arauto da vingança, da punição, em sua ideia distorcida de “justiça”.
À frente do título, Ennis consegue desenvolver uma proposta incomum para os quadrinhos da Marvel, ao narrar a história de Castle de acordo com a continuidade do tempo no mundo real, apresentando um Justiceiro já mais velho e cansado, após quase 30 anos de guerra sem descanso. Tal escolha narrativa do autor gera uma dinâmica excepcional para o personagem, o distanciando dos super-heróis fantasiados que permeiam o Universo Marvel regular, proporcionando uma história de teor mais adulto e sombrio.
A história contada pelo autor irlandês finca seus pés em um mundo mais realista e cruel, menos fantasioso, mas não menos violento. Sangue, balas e explosões tornam-se comuns ao longo das páginas da série, tornando familiar para o leitor o absurdo cotidiano de Frank Castle. O encadernado se inicia com “Nascido para matar”, que mostra os últimos dias de Frank no Vietnã, dando as pistas do que ele viria a se tornar, anos depois. Os dois arcos que completam o encadernado, “No princípio” e “Inferno irlandês”, mostram Frank já mais velho, envolvido em conflitos entre o governo, a máfia italiana, o serviço secreto inglês e a máfia irlandesa, em plena cidade de Nova York. Ao longo das páginas, vemos um inabalável Justiceiro, experiente e cirúrgico, mais confortável do que nunca dentro de seu papel enquanto emissário da morte na guerra ao crime.
O texto de Ennis é sensacional, pode-se dizer que o autor nasceu para escrever as histórias do Justiceiro, colocando seu conhecimento de guerra em prol da narrativa urbana do personagem e entendendo o drama inerente a Frank Castle. A arte de cada arco fica a cargo de um desenhista diferente: Darick Robertson desenha “Nascido para matar”, Lewis Larosa ilustra “No princípio” e Leandro Fernández “Inferno irlandês”. Apesar da diferença de traços, os desenhistas mantém uma sincronia ao conceberem um Frank Castle sombrio, soturno e ainda assim fortemente expressivo.
A suja, violenta e corrompida Nova York que leva Travis Bickle a sua sanguinária catarse reverbera na de Frank Castle, um soldado inabalável em sua inexpiável e trágica sina.
O encadernado de 339 páginas, publicado pela Panini Comics aqui no Brasil pela linha Marvel Deluxe, é o primeiro de um total de quatro volumes, que compilarão toda a fase de Garth Ennis à frente do título Justiceiro MAX, com acabamento de luxo. O segundo, Mãe Rússia, e o terceiro, Barracuda, também já se encontram disponíveis no mercado brasileiro, restando apenas o último para que essa elogiada fase seja concluída no formato atual.
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