Crítica | Trapaça
Trapaça trata de um grupo marginal de trambiqueiros com um nível de atuação modesto a princípio, visto o perigo que os acomete a todo momento. O caminho da quadrilha é atravessado por um agente da lei, que após idas e vindas (e trocas amorosas), decide por unir forças a fim de pegar peixes maiores para sua rede – por parte do agente – e livrar a própria cara – por parte do bando.
O “cabelo” bagunçado e colado no topo da cabeça de Irving Rosenfeld (Christian Bale) prenuncia os percalços que seu personagem sofrerá a frente da operação. O exercício de contenção que ele faz ao ter o topete desarrumado é impagável e serve inclusive para demonstrar a tensão dentro do ramo que escolheu e o quanto de cautela é necessário para ter uma longa subsistência.
David O. Russell sabe como ninguém trabalhar a imagem de Amy Adams. Todo filme que ele a dirige, a atriz parece ficar ainda mais bela se comparada a outras produções, sem falar que sua atuação só ascende quando contrastada com trabalhos de outros realizadores (exceção, claro, de O Mestre, de Paul Thomas Anderson). Graças ao seu cuidado, inteligência para os negócios e aos seus talentos dramatúrgicos, Sidney Prosser (ou Edith) constitui o par perfeito para os ardis e mirabolantes planos de Irving, fazendo-o praticar algo inédito para si: utilizar-se de sinceridade com uma mulher. A sensualidade que a ruiva passa para tela é absurda e é de causar frisson em senhores que não se acham mais viris. Grande parte disso deve-se a atuação, uma dos elementos mais acertados do filme, a outra boa parte é graças aos seus belíssimos predicados.
A movimentação de Richard DiMaso (Bradley Cooper) ainda no início da película reconfigura os papéis apresentados, mostrando um poder de adaptação ímpar por parte dos personagens. A narração de alguns deles garante multiplicidade de óticas relativas ao golpe que será aplicado e lembra a abordagem escolhida por Scorsese em Cassino. Não que isto seja um problema, longe disso.
A predileção do cineasta por relacionamentos fracassados e baseados em infidelidade ganha mais um capítulo nesta produção. A associação da incorreção conjugal à charlatanice repete o que foi visto em Huckabees: A Vida é uma Comédia, jogando os pecados de “integridade honrosa” no mesmo caldeirão, ainda que, dessa vez, a criminalidade, de fato, faça parte da equação. A diferença básica é que neste roteiro a poligamia é uma bandeira levantada: sua validade não é muito discutida, mas a situação é real e tratada como só mais uma forma de relação entre os homens, sem escolher um partido ou mensagem moral.
Victor Tellegio é um ótimo retorno de Robert De Niro a um de seus papéis mais confortáveis. O ator é magistral mesmo aparecendo durante pouco tempo na tela, tirando a má impressão após sua decepcionante participação em A Família, de Luc Besson. Outros coadjuvantes com presenças diminutas se destacam, como Jack Huston fazendo um mafioso que, ao contrário de seu personagem em Boardwalk Empire, não usa máscara, mas que rouba a cena sempre que a câmera o enquadra. Destaque também para Louie C. K. que melhora a cada participação em longas-metragens.
Obviamente que as atenções (ainda) estão voltadas para Jennifer Lawrence. Sua personagem é uma das mais imprevisíveis, não é a melhor coisa do filme, evidentemente – nem é a melhor atuação, se comparada a de Amy Adams – mas, ainda assim, sua caracterização guarda boas surpresas e evoca alguns dos bons twists da história. As desventuras da beldade de orgulho ferido garantem situações das mais curiosas e interessantes do roteiro.
O trâmite do plano final é tão dúbio que chega a ludibriar até o espectador mais atento, visto que é complicado tentar prever os próximos passos do grupo de Irving graças à imprevisibilidade e raciocínio caótico de seu líder. O nível de envolvimento de cada personagem só é comprovado após o desfecho, e, mesmo com os destinos finais, os que (aparentemente) têm um bom fim, não o têm sem questões incômodas; a perfeição passa longe de suas vidas. O roteiro de Russell e Eric Warren Singer é finalizado com uma mensagem aparentemente idílica e otimista, mas não tão clara, mais uma vez emulando Martin Scorsese (e Nicholas Pileggi) em Os Bons Companheiros. Trapaça é uma ode ao cinema de Scorsese, especialmente à filmografia ligada à temática da criminalidade, e é reverencial, em suma. Portanto, não desrespeita suas referências, ao contrário, as idolatra e lhes dá um tempero de atualidade e contemporaneidade sem maiores complicações.
Ouça nosso podcast sobre a filmografia de David O. Russel.