Resenha | Cumbe
A melhor interpretação da canção A Carne, composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette, foi realizada por Elza Soares. Em tom agudo, a intérprete proclama com voz visceral: a carne mais barata do mercado é a carne negra. Uma frase pesada de tom metafórico que carrega a interpretação vinda de épocas antigas em referência ao preconceito racial.
Retornando às origens da História do Brasil, Marcelo D´Salete nos apresenta Cumbe, uma HQ com quatro histórias passadas na época da escravidão. São relatos que evidenciam sentimentos primordiais, como amor, liberdade e fé, conduzindo os personagens centrais, escravos que desejam se ver livres de grilhões impostos pelo sistema escravocrata, infelizmente presente em diversas nações mundiais de épocas passadas, que não consideravam aberrante o uso de um povo estrangeiro, retirado à força de seu país materno, como mão de obra. Sob poder do chicote, a escravidão se difundiu no país do Brasil Colônia ao Império durante oficialmente mais de 300 anos.
A narrativa economiza nas palavras. Transcorrem no silêncio imagético entre sinais e inferências, dando-nos a imersão àquela época em que qualquer sussurro por parte dos negros era exemplo para demonstrar o poder de seus donos, entre prisões, torturas e morte. Os traços dão a dimensão emotiva da história, representada por um grupo que fez parte da história como um povo maltratado e que, acima de tudo, desejava sair desta condição. Um retrato cruel da origem dos negros no país.
No livro É Isso Um Homem? do italiano Primo Levi, um judeu que viveu a experiência do campo de concentração, é mencionada a questão da identidade dentro de um sistema opressor e do quanto estas pessoas se apegam até mesmo a elementos simbólicos – no seu caso, ele menciona um botão de camisa – para continuarem com garra para sobreviver. Em Cumbe, forças sagradas ou superiores são tais referências de resistência: deuses, o amor, o mar como profecia de purificação, quilombos como esperança de um futuro livre. Um conjunto que forma maneiras diversas de projeção e proteção contra o presente agressivo. Histórias trágicas carregadas de violência e morte, um sufocamento diário que tratava os negros como párias da sociedade. As poucas cenas em que os escravocratas aparecem são motivadas pela violência, e a obra é capaz de trazer a apreensão e tensão ao leitor.
A composição do Brasil é oriunda de origens diversas, e parte da vasta cultura do país deve-se aos índios nativos e aos africanos. Neste aspecto, a história mantém o apuro de diversas referências a expressões e tradições africanas trazidas pelos escravos. O título Cumbe, por exemplo, refere-se tanto ao quilombo de alguns países americanos como às línguas de Congo e Angola, cuja tradução da palavra significa sol, dia, luz, fogo, símbolos abstratos fundamentais para a composição da matéria da vida como metáfora simbólica. O glossário de termos, além da referência bibliográfica, demonstra o apuro de D´Salete em produzir uma obra com fidelidade histórica.
Mesmo que o passado seja amargo, a obra lançada pela Editora Veneta é de uma triste beleza e merece ser lida tanto quanto registro histórico como belo objeto de arte.
Compre: Cumbe – Marcelo D´Salete