Crítica | Roma (2)
Roma, novo filme de Alfonso Cuaron foi cercado de polêmicas desde sua concepção, alguma delas bem vazias, como ser uma produção da Netflix (como se isso fosse um pecado mortal) e outras um pouco mais relevantes, especialmente as que tocam as questões classistas que o roteiro abrange. De qualquer forma, essas tais questões não impediram o filme de ser premiado no Festival de Veneza, sagrando-se lá vencedor do principal prêmio. No Rio de Janeiro e em São Paulo a empresa de streaming promoveu sessões em cinemas, e de fato a experiência em ver um produto tão grandioso e pensado do jeito que foi é muito melhor apreciado em tela grande, onde o ambiente e tamanho do ecrã faz toda a diferença.
Esse talvez seja o filme mais artesanal e pessoal de Cuaron dos últimos anos, sendo bastante personalista, uma vez que ele faz não só roteiro e direção, mas também montagem e fotografia. Durante os créditos iniciais em que a água invade o chão da garagem do principal cenário do filme, a casa de uma família de classe média mexicana que é cuidada por Cleodaguiria Gutierrez (Yalitza Aparicio), mas que quase sempre é chamada de Cleo. Curiosamente, ela é a única entre as personagens principais que tem sua nomeação completa proferida, basicamente porque é ela a personagem mais humanizada e mais suscetível a toda sorte de infortúnios, como membra da classe trabalhadora e nada abastada.
Cuaron demora a colocar falas dentro do seu filme, primeiro ele ambienta o espectador na casa, indo e voltando com sua câmera pelos cômodos que Cleo arruma e cuida, estabelecendo um belo cenário e paisagem interna. A escolha por fazer o filme sem cores poderia soar errada mas aqui funciona até dramaticamente, uma vez que as aflições da personagem principal parecem pela ausência do artifício que normalmente evoca alegria. Sem cores, é mais fácil estabelecer a angústia como status quo.
Cleo não é uma moça que já aparece sofrendo, ao contrário, ela tem sua rotina, envolvendo as crianças que cuida, e para cada uma delas há uma afeição diferente, o mesmo se diz sobre o cachorro da família e a idosa que lá mora. As únicas pessoas dentro da casa que não são exatamente próximas dela são os patrões, as pessoas que a empregam, o casal Antonio (Fernando Grediaga) e Sofia (Marina de Tavira) que claramente estão em crise, ainda que esse plot demore um pouco para ser explorado, pois o foco narrativo é na vivência da moça que os serve.
Boa parte das cenas silenciosas se passam na garagem, a mesma que está no começo e a mesma onde Borras o cachorro vive e faz suas necessidades. É ali que se estabelece talvez a maior mostra da diferente entre classes dos núcleos de Cleo e Sofia/Antonio, pois o homem vive reclamando das fezes do animal, que geralmente não são limpas e sujam os pneus de seu carro já velho, uma máquina potente, mas claramente pequena demais para aquela garagem, assim como é o ego do personagem, grande demais para ser dividido com uma família que tem esposa, avó e quatro filhos infantes.
No entanto, esse não é um filme sobre Antonio, e sim sobre Cleo e logo a rotina da moça é retomada, com ela descobrindo tardiamente sua sexualidade, se envolvendo com o primo de um conhecido, que mais tarde, a abandona quando ela mais precisa. De certa forma, a maldição que paira sobre a sua patroa também paira sobre si e esse é um dos poucos momentos em que a jornada de ambas se encontra e coincide episodicamente.
A reação de Cleo é uma, de receio em ser despedida por ter engravidado, enquanto Sofia se torna amargurada, insensível a maioria dos eventos de seus filhos e anestesiada emocionalmente de uma forma que até aparenta cinismo. A grande exceção a essa regra é a boa recepção que ela dá a sua criada, quando ela assume que está esperando um bebê. Ela tenta auxiliar Cleo, fazer todo o processo de pré natal, não deixando ela desamparada e visto que o filme se passa entre 1970-71, isso é até um grande avanço, visto que boa parte das empregadas domésticas só tem direitos de fato de alguns anos para cá, e a realidade mundial é essa. No entanto, o texto de Cuaron não aplaca nada, há uma situação hierárquica posta e jamais transposta, quando pode, Sofia humilha a mulher que em alguns momentos chama de sua família. Por mais que a solidariedade seja grande, não há uma relação de igualdade ali, tampouco de conciliação e quem enxerga isso prestou pouca ou nenhuma atenção nessa relação em particular.
A rotina da família é muito bem exemplificada, sobretudo no que toca as viagens, sejam as de festas de fim de ano, ou simplesmente de férias, onde levam Cleo para ou servi-los ou para que ela também descanse. Na primeira viagem que fazem, há uma demonstração cabal da diferenças entre Sofia e Cleo, enquanto Sofia fica com os parentes bêbados, dentro da casa repleto de cães vivos e de cabeças empalhadas dos cachorros que serviram o sítio, enquanto a protagonista visita os subúrbios, onde os empregados se embriagam com bebidas baratas e copos sem luxo, nos arredores dos grandes locais. A união entre esses dois micro universos só acontece quando o fogo toma a mata, pois o incêndio claramente não descrimina raça, credo ou classe social.
As curvas finais do longa ganham muita emoção, em eventos que deveriam ser usuais mas que são cortados pela entropia. Após perceber que o sujeito que a engravidou não arcaria com a responsabilidade paternal, Cleo vai a uma loja comprar um berço para o seu bebê, e nas ruas estoura uma briga, entre revolucionários e contra revolucionários. Dentro da loja de varejo ela se depara com uma inesperada surpresa, que aparentemente colabora para que sua bolsa rompa e ela entre em trabalho de parto.
Já no hospital toda a sequência pela sobrevivência da criança passa a ser pesada. A forma como Cuaron mostra a frieza dos médicos diante do parto e a interação entre Cleo e sua recém nascida filha varia entre a impotência e a depressão aguda. As sensações dos personagens são facilmente passadas ao espectador, a falta de poder de reação dos personagens é acompanhada normalmente por lágrimas e soluços de quem assiste e essa sensação prevista no ambiente do cinema certamente não tem igual situação a ver de maneira individual em um domicilio individual.
Apesar de haver uma naturalização de boa parte dos eventos cotidianos, como as brigas da família, os destratos muito comuns entre patrões e empregados, a bandinha militar que passa pela rua sempre naquele período de fim de ano, há sempre uma sensação de incômodo, não só por parte de Cleo, mas também de toda a família. Nem mesmo as crianças parecem sentir-se pertencendo aquele lugar ou situação. Obviamente que é é a mepregada que mais sente isso, afinal seu trauma e abandono são mais recentes que os de Sofia e as crianças. Sua mudez não é só fruto do evento traumático que sofreu, mas também uma manifestação em forma de voto de silêncio pelo segredo que guarda. Claramente queria ela sentir a mesma anestesia que Sofia, mas não consegue, e em um momento de catarse, no final quando estão na praia e ela se supera para salvar as crianças, finalmente ela e Sofia desabam juntas, uma por alivio de finalmente conseguir verbalizar o desejo que tinha e outra por alivio e agradecimento por não ter tido ainda mais perdas naquele momento.
Roma registra emocionalmente como é a trajetória da classe operária, resultando em uma série de relações fracassadas repletas de altos e baixos sentimentais, onde mesmo após heroísmos, ainda se joga o mesmo jogo de sobrevivência estabelecido no capitalismo, onde os privilégios passam por cima inclusive dos laços afetivos. Cuaron é certeiro em seu comentário social e na exposição visceral dos relacionamentos, sem aplacar nenhuma relação de poder escusa e sem livrar os personagens proletários da luta diária que é a sobrevivência em uma zona urbana da América Latina, mostrando que mesmo após uma gravidez cujo fim foi terrível, não há como resguardar a mãe que acabou de sofrer tudo aquilo, obrigando-o a cuidar de todas as outras crianças da casa e subir escadas que não deveriam ser escaladas nessa condição, sendo essa só uma das pequenas mostras que o filme dá do quão cheia de agruras é vida da moça.