Resenha | Brasil em Campo – Nelson Rodrigues
“Não admito censura nem de Jesus Cristo.”, ele disse. Nelson Rodrigues é o que de melhor aconteceu ao típico tiozão do churrasco que procura refinar suas próprias observações, afim de não ser imediatista e pouco sofisticado em suas análises. O espírito legitimamente brasileiro de Nelson Rodrigues dá o tom em suas obras, e não apenas em suas famosas peças teatrais – já que toda unanimidade é burra, será que o autor ficaria incomodado com a adoração generalizada por sua obra? Certo mesmo é que, em algum momento, a dramaturgia da vida real pediu a existência das crônicas esportivas de Rodrigues, e nesse âmbito ele também se especializou e brilhou historicamente como poucos, mas muito poucos. Mas infelizmente, um número ainda menor de pessoas conhece a verve esportiva do autor que transportou a tragédia grega para a sociedade carioca do início do século XX, em clássicos do naipe de Vestido de Noiva, Boca de Ouro, Os Sete Gatinhos e A Falecida, tendo a última sido agraciada no Cinema na soberba adaptação de 1965, com Fernanda Montenegro.
Assim, ficou-se acertado no senso popular que Rodrigues brilhou somente na ficção, nos contos polêmicos que migraram do teatro para várias outras mídias, tendo seu legado então fadado a histórias ainda que substancialmente nacionais e repletas de críticas à normalidade da época, além de muito erotismo e um sadismo latente por suas personagens adoravelmente imperfeitas – meros arquétipos de sua fantástica obra imortalizada na literatura brasileira. Mas havia algo que o dramaturgo irremediavelmente realista conhecia ainda mais que os meandros de uma boa ficção, e também merece ser consagrado por seus comentários geniais a ele: o futebol. Foi através da ótica do mais popular esporte no Brasil, que Rodrigues fez-se especialista em averiguar não só o espírito da nossa gente, mas o próprio espírito humano: competitivo, imprevisível e sacana, muitas vezes consigo mesmo. Brasil em Campo é uma ode ao povo brasileiro pelo filtro do que melhor o simboliza: o sagrado bate bola.
É possível rever e estudar a sociedade brasileira pelas crônicas futebolísticas de Rodrigues, tal como explora-se a história egípcia por meio de seus signos deixados na pedra e papel, intocados pela ação do tempo. Com absoluta irreverência tal uma conversa solta de boteco, e bem fundamentada a ponto de nos incentivar a tirar nossas próprias conclusões no decorrer da leitura, narra-se o que faz esse país ser o que ele é, suas manias, suas alegrias, seus estímulos primários. Olhando para nós pelas suas palavras, notamos o óbvio: somos um povo cuja imaturidade e tabus nos guiam, feito o pai levando o filho para a escola, e assim continua sendo. Temos alma de feriado, nos rebaixamos perante o estrangeiro, e adoramos abusar do poder que alguns de nós conquistamos, e Rodrigues não está errado – mas é cruel em algumas verdades. Guiado pelas paixões, assim segue o brasileiro, com uma alegria resistente e internacionalmente reconhecida, afinal, não desistimos nunca, e sempre acreditamos ser possível virar o jogo – mesmo que nos quarenta e sete do segundo tempo.
E para onde vai o otimismo do povo brasileiro? Para a morte do juiz ladrão, para o ganho na loteria esportiva, ou para a vitória do Flamengo? Para Nelson Rodrigues, a natureza de tudo nesse país é uma variação ou uma extensão de um jogo de futebol no qual a nossa esperança mais frenética nunca termina, mesmo após os pênaltis. Com mais de setenta textos reunidos por sua filha, a pesquisadora Sonia Rodrigues, nesta antologia da editora Nova Fronteira, os brasileiros agora têm a grande oportunidade de se ver pelo espelho da lógica e da emoção do esporte que melhor dialoga com nossos estilos de vida em Brasil em Campo. De fato deve ser inebriante, enquanto artista, encontrar em sua maior paixão aquilo que melhor metaforiza o seu próprio povo. E se aqui é o futebol, o que seria no México? E na Síria? E no Japão? Eles que também pensem por eles. Aqui, já tivemos a sorte de ser precisa e sarcasticamente analisados por aquele que sempre amou ser um de nós, e como já afirmou numa de suas crônicas para o jornal O Globo: “A verdade é o seguinte: quando o brasileiro acredita em si mesmo, ele é imbatível.”
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