Crítica | Sem Fôlego
Todd Haynes ostenta claramente aqui um espectro fílmico suspenso no tempo. Sem Fôlego é um filme que não pertence aos dias de hoje, em absoluto, ou seja, é bom demais para a geração snapchat e seus pais também hipnotizados pela TV, por sua vez. É uma fábula infantil deslocada do cotidiano (que ousa representar) e que não representa em absolutamente nada a esquizofrenia midiática e o tempo social atuais. Por isso mesmo, merece ser descoberta por aqueles cujo olhar se estende um pouco além do catálogo mainstream, de sempre.
Em plenos anos 70, temos aqui o clássico garoto que busca pelo pai e é atingido por um raio, e já nos idos de 20, uma garota independente também a procura de alguém, de sua mãe, e principalmente do seu lugar no mundo selvagem, efervescente e movediço de Nova York que o filme bem demonstra, sempre com uma direção de artes e figurinos maravilhosos. Em meio a essa temporalidade, uma semelhança entre os dois é inevitável: a surdez, casual ou não, e você ai já deve estar se perguntando: Por que o filme abre espaço para tratar de duas histórias, quando uma já renderia o encanto que o título em inglês carrega, Wonderstruck?
Porque Haynes quer falar sobre o tempo. Posto que é cineasta da fabulação, e que usa e abusa da fruição de uma câmera e de seus filtros imagéticos para destilar as engrenagens lúdicas de seus universos paralelos, onde arquétipos sociais fingem ser pessoas normais para capturarem nossa identificação com as personagens e suas realidades expostas, algo que Quentin Tarantino por exemplo também explora e o faz com agressividade incomparável, após o ultra merecido sucesso crítico de Carol, de 2015, o cineasta pareceu querer apostar de verdade na essência fabulesca de sua perspectiva voltando sua atenção ao imaginativo escritor Brian Selznick.
Eis então a fusão de um diretor de cinema cada vez mais respeitado após o melhor romance da década estrelado por Rooney Mara e Cate Blanchett, junto ao famoso autor de livros para crianças cuja cria mais icônica talvez seja A Invenção de Hugo Cabret, aquela aventura divertida e despretensiosa que Martin Scorsese transformou em homenagem escrachada ao cinema com um dos mais belos usos do 3D que já se viu num filme norte-americano. Nos olhos de Haynes, por outro lado, o projeto é cozinhado com calma e profundidade de hipóteses cativas, sendo que o universo infantil de Selznick jamais seria infantilizado na adaptação de sua(s) trama(s), mas serenamente abordado na viagem até então mais estética e poeticamente refinada da carreira do cineasta sendo, afinal, um expoente tanto das épocas que ilustra, quanto do próprio cinema de quem o rege.
Mas o que vale realmente a sessão de Sem Fôlego é o trato dado as imagens, e principalmente, o que fica claro a cada cena, o zelo pela conexão hiper coerente entre elas, o peso da interação entre significados diferentes interligados por um corte único, algo típica e fundamentalmente cinematográfico, até surgir outro corte e tudo mudar de direção novamente, sem jamais perder o ritmo, a identidade e a regularidade de significações na narrativa que segue crianças numa jornada de descobrimento, e autodescobrimento através de um mundo, conflitos e sentimentos humanos tão próprio delas, e ao mesmo tempo, tão próximos dos nossos, numa América ligada por duas épocas pertencentes ao mesmo século, onde um toque desferido de lirismo e poesia no mundo real para que este, num momento seguinte, o mesmo possa se infestar de lirismo, algo de certo incompreensível pelo espectador insensível, faz toda a diferença.
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