Crítica | Malévola
Originários da tradição oral, os contos de fadas caracterizam-se um dos gêneros mais antigos da literatura. Histórias consideradas, hoje, como infantis foram, em séculos passados, carregadas de violência e eram transmitidas culturalmente como parte do folclore local, motivo que justifica diversas versões para uma mesma narrativa. Durante os séculos, escritores como Charles Perrault, Jean de La Fontaine e os Irmãos Grimm foram responsáveis por documentar a tradição popular da época em que viveram, modificando as histórias conforme suas particularidades regionais ou alterando suas estruturas, deixando-as mais amenas e familiares.
Nas telas, o estúdio de Walt Disney produziu diversos clássicos animados com base nestas histórias, originando novas versões narrativas – que muitos consideram definitivas – de contos como Branca de Neve e os Sete Anões, A Pequena Sereia, Cinderela e A Bela Adormecida. Filmes que trouxeram prestígio à empresa e formaram as modelares princesas Disney.
Seguindo o sucesso de Alice No País das Maravilhas, cuja adaptação cinematográfica em live-action trouxe à produtora um retorno financeiro alto em 2010, a obra A Bela Adormecida, de 1959, ganha uma nova versão. Dessa vez, a história foca o lado da fada Malévola, que amaldiçoa a princesa Aurora.
A história de Malévola utiliza a base do clássico citado, pervertendo-o ao mostrar a visão da antagonista. Malévola é uma pequena fada poderosa que vive em uma floresta encantada situada ao lado de um reino. Em sua infância, conhece o garoto Stefan, com quem mantém a amizade até a adolescência, quando se afastam um do outro.
Malévola torna-se uma das fadas mais poderosas do reino e guardiã da floresta dos ataques humanos que desejam destruir o local, tido como ameaçador. Após uma dessas batalhas, o Rei, ferido e prestes a morrer, exige o aniquilamento da fada e coloca o trono à disposição de quem matá-la. Almejando o cargo de rei, o outrora menino Stefan reencontra-se com sua antiga amiga e usurpa-lhe as asas.
Como uma costumeira produção Disney, faltam elementos que explorem a transformação da personagem de maneira adequada. Ao ser traída pelo amigo memorial da infância, não há nenhuma personagem em cena que produza um diálogo com a futura vilã. Ao público, cabe inferir sua transformação na estranha cena em que, caminhando pelo reino outrora brilhante, o local começa a se tornar lúgubre e ameaçador. Até a transformação que alinha a personagem com a história oficial, o roteiro de Linda Woolverton — que também roteirizou a recente adaptação de Alice no País das Maravilhas, e as animações O Rei Leão, A Bela e a Fera, entre outras — parece apressado, apresentando um apanhado ocasional de cenas que não justifica o porquê Malévola foi uma fada injustiçada.
A personagem acrescenta tonalidades ao costumeiro preto e branco do estúdio. Uma constatação de que os tempos de outrora — com o costumeiro maniqueísmo Bem versus Mal — estão extintos, o que prova que o público não deseja mais ver uma tradicional fábula sobre a princesa que espera o amor perfeito. Sob este aspecto, a Disney luta para evidenciar que reconhece as mudanças da sociedade, modificando o paradigma narrativo e rindo de si mesma — como Encantada —, tornando-se capaz de produzir histórias de princesas que atendam às novas exigências dos espectadores.
O sentimento de traição que se manifesta em Malévola é o elemento que causa a maldição — sono eterno até que um amor verdadeiro a desperte — à recém-nascida Aurora. Uma das mais grandiosas cenas das animações Disney que a nova versão honra com pompa e mantém a mesma dimensão épica, fato que comprova que Angelina Jolie é a parte mais consistente da produção.
Ainda que o roteiro seja mediano, sua interpretação passa nuances necessárias de uma transitória personagem dúbia. Sem exagerar nos trejeitos de vilões — que os deixam caricatos —, a atriz demonstra que entrou em cena para se tornar uma bela encarnação da antagonista.
Se a fotografia e o ambiente à meia-luz são esteticamente belos a cada fotograma, o contrato feito com o público, em relação à veracidade narrativa, falha na maior parte do roteiro. Tentando enfocar em demasia o lado sombrio de Malévola, outras personagens importantes à trama se tornam simplistas. As três fadas-madrinhas, que criam Aurora até os 16 anos da princesa, parecem despropositadas tanto como personagens quanto com importância à história. O exagero dos efeitos especiais fazem as fadas — vistas na maioria das vezes em tamanho diminuto — parecerem pequenas bonecas voadoras e não seres de um mundo maravilhoso. Um desequilíbrio que lembra o excesso estético e agoniante da Alice no País das Maravilhas, de Tim Burton.
Quando a personagem Aurora encontra-se com Malévola, não há nenhuma empatia pela mocinha. Em parte porque Ellen Fanning não tem a mesma presença cênica de Jolie, e também porque nem em cenas solo consegue roubar um pouco de atenção para si.
A própria carência narrativa revela uma questão maior que equipara o desfecho dessa produção com o de Frozen – Uma Aventura Congelante. Tal semelhança faz questionar até onde a Disney estaria disposta a modificar sua estrutura narrativa, visto que, em menos de um ano, entregou duas produções com a mesma lição moral que substitui o suposto amor entre príncipe e princesa e faz do sentimento fraternal ou maternal o gatilho que quebra a maldição. Mesmo ciente de que o público atual exige um novo conceito nos filmes de princesas e reinos encantados, a empresa não parece desejar o desenvolvimento de novas saídas que não uma outra fórmula a ser repetida mais de uma vez.
Com um roteiro fraco diante de um rico material, não há consistência na história que produza um ótimo filme familiar. Pena para Jolie, que entra em cena com vontade de fazer um grande desempenho, mas não encontra o ambiente necessário ao desejo de ser a Malévola definitiva.