Crítica | Últimos Dias no Deserto
O deserto é um ambiente iluminado e obscuro, permeado por uma vida subterrânea e um relevo duro e instável. É o cenário perfeito para se perder, e talvez para se encontrar. E este caráter polissêmico do deserto reflete nas 3 religiões concebidas no deserto, cristianismo, judaísmo e islamismo, e suas mitologias, sendo no deserto o local onde a fé é confrontada, idealizada e onde o silêncio ou a insolação permitem que homens de fé ouçam Deus.
Essas características são tratadas neste novo filme sobre a trajetória de Ioshua, como chamava Maria, ou Jesus (Ewan McGregor, que já nasce como uma escolha problemática pela perpetuação da visão eurocêntrica de Jesus). A fim de encontrar sua fé e a si mesmo, Ioshua peregrina para si no deserto e confronta-se com a tentação do Diabo que o acompanha na intenção de dirimir o relacionamento entre filho e deus-pai e assim tentar o homem santo. Seu jejum é hoje cumprido e celebrado na quaresma, período que antecede a Páscoa. Nesta apresentação de Rodrigo García, na última tentação de Ioshua a característica de sua filmografia de estranheza sobre o mundo ao redor se mantém, com tons bem menos sensacionalistas que seus pares, vemos um Jesus transformando-se em Cristo a partir da provação imposta a si, e punindo-se por não poder salvar a todos. Durante a jornada, Lúcifer (também interpretado por McGregor) surge como um reflexo seu na água, uma visão distorcida de si mesmo, mais charmoso e alegre, mas com uma estranheza e carência tocantes. Aqui o Lúcifer é demonstrado como um filho que perdeu o amor do pai e assim sente-se deslocado de si e do mundo, apresentando-se como um anjo caído e trágico. A interpretação de Lúcifer como uma visão do próprio Jesus demonstra ideia de que o Diabo não apenas como uma figura mítica, mas também uma face do próprio Jesus caso ousasse descer a ladeira escorregadia da perda da fé.
O deserto é apresentado como uma forma de restauração, pois embora a vida ou fé se mostrem difíceis de serem cultivadas em um local tão árido, é lá onde ambos se tornam mais fortes. O povo do deserto é forte, é robusto, moldado pela geografia e quase sendo uma parte inalienável da mesma. O sofrimento torna o pobre forte e mata o pobre de espírito. A fé é então tão mais forte quanto mais posta a prova. A fé surge neste ambiente porque é então tudo que resta à quem está perdido.
Toda a mitologia judaico-cristã tem como temas relevantes a solidão, a provação e a devoção. Neste ponto o deserto apresenta participação central, pois suas características representam muito do que se obtém dessas religiões, onde a vida realmente satisfatória é a pós vida. A vida no deserto não é satisfatória, mas olhar Jerusalém ao horizonte é suficiente para alimentar a esperança, e viver no amanhã de sua fé.
Para apresentar este capítulo da vida de Jesus, o diretor Garcia volta-se para uma abordagem menos glamourosa, evitando o uso de filtros e de trilha sonora, colocando a jornada filmada em perspectiva e inserindo o espectador na trama. Em determinado momento nos é apresentada uma família de nômades do deserto. Pessoas sem nome que são representadas apenas pelos seus papéis e assim, o reflexo desses papéis nas elucubrações de Jesus. O Pai, o filho e a Mãe, em uma trindade pré cristo. O pai, potencialmente perigoso, de alma boa, porém árida, incapaz de conversar com seu filho mesmo quando este está ao seu lado, mesmo quando tentava. A falta de carinho, a falta de fala, a dispersão apesar de dizer seu amor. “Não fale, aja, e quando não puder agir, o silêncio”, diz Jesus à si mesmo em determinado momento. Assim a fala do amor sem sua ação dispersa-se e gera a raiva, a morte do amor e da fé. “Eu não sou um mal filho”, grita o Filho (O excelente Tye Sheridan, porém aqui aquém de sua performance possível) e isto reflete em Jesus, que sem saber o que esperar, implora uma resposta de Deus aos seus apelos. A Mãe adoece, e ameaça ruir aquela família com sua doença. Jesus sente então em si a dificuldade de ser não apenas Santo, mas ser pessoa, flertando com seus sentimentos e sensações apresentando tanta empatia quanto estranheza, sem jamais se encontrar em vida.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.