Crítica | Uma Questão Pessoal
Desde que Guerra ao Terror ganhou o Oscar, e Clint Eastwood fez uma ode ao vício estadunidense por auto bajulação, com Sniper Americano (um dos 50 filmes mais lucrativos nas bilheterias americanas de todos os tempos), poucos filmes no mundo tentaram e de fato foram bem-sucedidos em mostrar conflitos de proporções bélicas alarmantes, em diversos cenários onde ainda explodem e devastam a pacificidade que pessoas, suas tribos e culturas precisam ter para resistir, sobreviver, e por fim, se isso é possível em lugares como Israel e Palestina, viver.
Agindo como se todo tipo de visão já tenha sido destilada ao público de Cinema, os “filmes de guerra” hoje em dia (com exceção de Os Campos Voltarão em 2014, o último filme do mestre Ermanno Olmi antes da sua morte) focam mais nas consequências paralelas e/ou posteriores de se passar por uma situação dessas; como se o centro da problemática não fosse mais o foco nas bombas e seus dramas de campo de batalha, e sim as suas questões periféricas, familiares, suas marolas, seus efeitos no homem ou na sociedade que sempre o torna quem ele(a) é, e que colhe os frutos do conflito armado que soldados e seus comandantes presenciam a ferro, fogo e sangue.
Essa manobra discursiva, algo simbolizado por Stanley Kubrick nos dois filmes que existem dentro de Nascido para Matar, abraçando tanto o lado dos fuzis e das explosões (a violência gráfica de uma guerra), quanto o stress psicológico resultante de uma constante tensão onipresente, e suas avaliações dentro de um quartel general norte-americano, essa abordagem desse último lado menos icônico mas com grande potencial de aprofundamento dramático, estudando o comportamento das pessoas vivendo dia após dia uma situação desumana, deve-se a incrível capacidade de toda obra de arte de nos impactar, na forma que for, e dialogar com as nossas experiências de vida – sejam elas quais forem.
Uma Questão Pessoal é uma boa prova disso, conectando-nos em pleno solo italiano a uma segunda grande guerra mundial cujas lembranças latentes a fazem respirar eternamente, encontrando por isso fortes ecos hoje e amanhã num sem-número de produções culturais ao redor do nosso pequeno grande globo que, para a raça humana, poucas vezes foi tão complexo quanto no conturbado vigésimo século D.C. Tendo como contexto histórico a luta contra o nazifascismo em 1943, o filme da dupla Paolo e Vittorio Taviani, adaptando de modo deliciosamente visual uma das mais importantes obras da literatura italiana, o homônimo livro de Beppe Fenoglio, foca na luta interna do militar Milton, vagando pelas colinas e campos de Langhe no noroeste da Itália, dividido entre ajudar seu país e se prender de vez no amor que ele sabe ser a mulher da sua vida.
De espírito benevolente, Milton vaga entre a danação do seu povo, e o resistir militar do mesmo, mas sem nunca conseguir colocar em segundo plano a história que viveu e ousa resgatar a quase todo momento com a doce e bela Fulvia, aquela que dança em tempos em que isso é proibido. Assim, o título de Uma Questão Pessoal ironiza o ótimo equilíbrio que tanto livro e filme conseguem atingir entre as esferas militares e particulares de um homem que se arrisca e se devota sem descanso a duas questões, uma nacionalista e muito mais ampla, e a outra invariavelmente emocional e pertinente só a si mesmo e mais ninguém (a cena na qual Milton encontra seus velhos pais, muito próximo de soldados inimigos, e os abraça como um raio, partindo em questão de segundos para não chamar a atenção, é dolorosamente maravilhosa).
A narrativa imagética da adaptação do livro de Fenoglio merece um capítulo à parte, sendo que o filme faz uso aqui de um ótimo e contido trabalho de câmera, ainda que por vezes ousado e totalmente participativo de uma dramaticidade acionária que nunca descansa, nunca deixa de nos surpreender, principalmente nos minutos iniciais e que nos fazem submergir as forças reais que movem a história: Medo político, a expectativa de estar sempre passos à frente dos inimigos fascistas, os aliados à resistência, o mundo externo que chama para as incertezas da neblina e que não deixa Milton relembrar seu passado, mais simples e infinitamente mais feliz. Por essas e por outras, eis aqui uma história (e filme) muito maior que os seus rótulos, e que por mais que guarde semelhança com uma típica obra de conflitos armados, carregando todos os seus típicos elementos de gênero, consegue ir além dos limites do seu gênero, tal como o recente e magnífico Timbuktu. Outros cenários políticos, mesmos dilemas humanos.
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