Atenção: contém spoilers de toda a série. Siga por sua conta e risco.
De forma merecida, Breaking Bad entrou para o seleto grupo de séries da considerada atual era de ouro da televisão americana. A esta lista, em que também figuram Sopranos, Mad Men, The Wire e A Sete Palmos, eu acrescentaria ainda a pouco comentada Deadwood da HBO, que, apesar de ter sido cancelada após a terceira temporada, em 2006, continua sendo uma das séries mais bem escritas até hoje.
No entanto, algumas pessoas creditam a ótima série criada por Vince Gilligan para o canal pago AMC como a melhor série de todos os tempos, que dividiu a televisão entre antes e depois, e que Breaking Bad é um exemplo Impecável da televisão como forma de arte. Não sei se chega a tanto, já que ela tem problemas narrativos perceptíveis, entre eles muitos “golpe de roteiro”. Golpe de roteiro é quando o roteirista e/ou diretor resolvem forçar uma situação não natural entre os personagens para que se crie uma tensão entre eles. Quando bem feita, tudo passa desapercebido e o roteiro chega ao nível de excelência de Sopranos e Deadwood; agora, quando não é, quebra a quarta parede e tira o espectador da história.
Como desconstruir é muito mais interessante do que construir, sem mais delongas, vamos a elas:
01 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Hank deixa o ferro-velho onde está encurralando Jesse e Walt no trailer e segue correndo para o hospital depois de receber uma ligação informando que Marie está internada.
Golpe de roteiro: encontrar uma solução para livrar Hank de quase prender Walt e Jesse.
Forçada de barra: entende-se que o personagem pode entrar em choque ao receber uma notícia do tipo, mas não é do feitio do melhor agente investigativo do DEA não checar e confirmar a veracidade de qualquer informação que receba, ainda mais um que lide com chefões do crime organizado.
02 – Episódio “Sunset” (6º epi/3a temp): Walt ignora o aviso de Badger sobre avisar Jesse de que mudariam o trailer de lugar, mesmo sabendo que Hank o estava seguindo.
Golpe de roteiro: fazer com que Hank quase prenda Jesse e Walt por causa do trailer.
Forçada de barra: o sempre cuidadoso Walter White não o foi dessa vez por conveniência do roteiro.
03 – Episódio “4 Days Out” (9º epi/2ª temp): Jesse “esquece” a chave do trailer ligado durante todo o final de semana, arriando a bateria.
Golpe de roteiro: deixar os dois protagonistas à revelia no meio do deserto.
Forçada de barra: eles sempre passaram dias cozinhando no meio do deserto e nada nunca aconteceu, somente quando os roteiristas quiseram.
04 – Episódio “ABQ” (13º epi/2ª temp): Sob o efeito da anestesia, Walter revela o segundo celular para Skyler.
Golpe de roteiro: além da grande revelação bombástica, iniciar o arco de decaída do protagonista ao mostrar o começo da ruptura familiar, a falta de apoio de Skyler e Jr.
Forçada de barra: mesmo tendo falado “sem querer” e sob o efeito do anestésico, nada justifica o descaso do roteiro, jogando a informação sem mais nem menos, com o único propósito já dito acima.
05 – Episódio “Half Measure” (12º epi/3ª temp): Tomás, o irmão da namorada de Jesse, aparece morto mesmo depois de Gus Fring fazer os traficantes prometerem não usar mais meninos.
Golpe de roteiro: fazer com que Jesse busque vingança do modo mais desesperado possível, a ponto de uma catástrofe em potencial surgir.
Forçada de barra: mesmo sendo inconsequente durante boa parte da série, Jesse já havia tido o seu momento estúpido minutos antes do encontro com Fring, ao tentar envenenar os traficantes ao lado da prostituta. Fring sempre foi conhecido como um homem de negócios razoável e que sempre cumpriu a sua palavra, portanto, não é justificável o acontecido com o menino.
06 – Episódio “Say My Name” (07º epi/5ª temp): Walter mata Mike para pegar os nomes dos comparsas de Mike que estavam na prisão.
Golpe de roteiro: matar um dos personagens mais carismáticos da série.
Forçada de barra: para evitar que o roteiro fosse criticado como um grande furo, o roteirista tratou de colocar que o próprio Walter “se lembrou” de que Lydia tinha a lista.
07 – Episódio “Gliding Over All” (08º epi/5ª temp): Hank finalmente descobre que Walter é Heisenberg.
Golpe de roteiro: promover uma das maiores revelações da série e iniciar o último arco da história.
Forçada de barra: assim, do nada, enquanto está cagando, Hank percebe que Walter é Heisenberg por causa da dedicatória WW, sendo que é algo que “o maior investigador da DEA” poderia ter deduzido uma temporada e meia atrás. Então tá, né.
Antes que algum leitor apele para a “humanidade” dos personagens como justificativa para seus atos falhos nestes exemplos citados aqui, lembro que a humanidade emBreaking Bad é mostrada de forma exemplar quando Walter aos poucos vai se transformando no Heisenberg durante toda a história, Skyler traindo o Walt com o Ted Beneke, Jesse tendo suas recaídas de drogas e se sentindo deprimido de vez em quando, Hank tendo sua crise de pânico e a difícil recuperação do hospital, além de Marie tendo o seu dia de cleptomaníaca.
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Texto de autoria de Pablo Grilo.
realmente a ideia boba de Hank descobrir Walter como Heisenberg nao coube, esperava algo mais inteligente ou que fosse feito com mais antecedencia. Alguns eu notei reassistindo a série e outras vi agora. Também estudo cinema e é sempre bom fazer esses exercicios hahaha.
Eu encaro Breaking Bad como uma série cheia de situações irônicas. Acho que o autor do post forçou a barra, uma vez que ainda não percebeu que essa é a maneira do Vince Gilligan construir enredos e é um dos maiores trunfos da série, ou seja, se servir de efeitos borboletas e, às vezes, do acaso. Como é o caso do avião caindo e matando um monte de gente por meio de uma junção de acontecimentos simples ou o caso do Hank descobrindo, finalmente, quem é o Heisenberg, enquanto estava cagando no vaso sanitário. Acho que esse tipo de “erro” seria considerado um “erro” em séries mais despretensiosas e cotidianas, como The Sopranos e The Wire, não faz sentido querer impor um ritmo e uma lógica narrativa diferente à Breaking Bad. Além do mais, foram tais golpes de roteiro os mais responsáveis por atrair o interesse do expectador. Em The Sopranos, por exemplo, o autor várias vezes cria situações muito fodas e depois joga um balde de água fria. Isso nunca aconteceria em Breaking Bad, justamente por conta dos “golpes roteirísticos”.
Eu adoro dissecar os seriados que assisto e desconstruir roteiro de cabo a rabo, procurando falhas narrativas ou pontas soltas na história. Mas eu descordo veementemente de todas as “forçadas de barra” apontadas aqui. Eu ressalto, para começar, que Breaking Bad é uma série orientada sob a filosofia do “acaso”. Tal fica bem nítido no episódio “Fly”. A mosca representa a inevitabilidade do acaso, a imprecisão angustiante que nunca podemos afastar de nós: são os 0.9% que afastam o produto de Walt da pura perfeição. No próprio episódio Walt desabafa sobre como ele sentou para beber com o pai da namorada falecida de Jesse na mesma noite em que a filha do homem morreru. “Quais são as chances?” ele diz. “O universo deve estar tentando me comunicar alguma coisa com isso, mas eu simplesmente não sei dizer o que é”, segundo o personagem. A lição da série é: Não há mensagem nenhuma, o acaso acontece e você é que escolhe como lidar com isso:
01 – Quando você recebe a notícia imprecisa de que sua esposa está em um hospital por estar envolvida em um acidente de trânsito, você não pensa, não se há tempo sequer para avaliar suas prioridades. Hank é sim, tão humano quanto você descreveu, com ataques de pânico: e aqui não foi diferente.
02 – Errado, senhor. Walt orientou explicitamente a todos para que não ligassem para Pinkman sob o risco de ele estar com o telefone grampeado. Badger esperou que Walt se afastasse para fazer exatamente o contrário das orientações de Walt e ligar para Jesse Pinkman. O erro não foi de Walt.
03 – Naquele dia específico, como parte de sua mania de controle, Walt orientou para que Jesse NÃO DEIXASSE a chave na bancada, pois ali era local de trabalho. Com preguiça de deixar a chave em outro lugar e enfrentar outro piti de Walt, Jesse resolve deixar a chave na ignição. É portanto que eles cozinharam outras vezes no deserto e nada semelhante aconteceu.~
04 e 07 – Como expliquei acima, o acaso é o principal motor da série e é por um excelente motivo. Não importa o quanto Walter tente se manter no controle, algo sempre escapá seu domínio e irá se voltar contra ele – e contra todos nós. São dois momentos de “guarda baixa” de Walt e que o derrubam. No primeiro, Walt está sedado (vulnerável), no segundo, Walter acabou de abandonar por bem todo o negócio de drogas e sente que está pronto para ser apenas um proprietário de lava-jato.
05 – Sobre Gus Fring e o menino, era meio óbvio que o menino não poderia simplesmente sair vivo depois de conhecer todo o esquema dos traficantes. Como eles poderiam simplesmente dispensá-lo quando o garoto já tinha abandonado a própria família para viver na mão dos traficantes? O menino sofreu o destino que uma mula sofre quando não pode mais ser usada para trabalhar. Quanto a Gus, ele mesmo afirmou que gostaria de ter lidado com isso com as próprias mãos: ele se ofendeu especialmente com a tomada de iniciativa de Walt em matar os dois traficantes, passando por cima de sua autoridade.
06 – Walt se lembra de que Lydia tinha os nomes DEPOIS de já ter atirado em Mike. Ele não o diz para justificar e dizer que matou Mike porque sabia que poderia pegar os nomes com a Lydia. Ele o diz porque acabou de perceber que matou Mike em vão – não que fosse propositado para começo de conversa. Foi um assassinato claramente passional: a maneira agressiva e nervosa com que ele voltou para o próprio carro para pegar a arma, todo o diálogo raivoso e ressentido com Mike e, é claro, a ofensa de que Walt deveria “saber o seu lugar” e ter deixado Gus Fring viver. Foi mais uma demonstração da vaidade de Walter.
A representação de humanidade de Breaking Bad é essa: somos suscetíveis à maldade, à imoralidade e o fato de estarmos em dor ou desespero não justificam essas atitudes, mas podemos nos impelir a viver o pior do que há em nós. A representação de mundo, de realidade de Breaking Bad é esse retrato angustiante da falta de controle, do acaso que sempre escapa nossa razão.
Eu adoraria ver revisões que apontassem pontos a serem trabalhados ou melhorados em Breaking Bad: não foi o caso aqui. Talvez o seriado seja, de fato, o ápice intocável da arte na televisão que tanto afirmam e que, humildemente, não consigo descordar.