No oitavo episódio da segunda temporada de Breaking Bad, um novo personagem coadjuvante se tornaria o aliado legal da dupla Walter White e Jesse Pinkman. A figura de Saul Goodman era um dos alívios cômicos do drama e se destacava pela interpretação de Bob Odenkirk como um advogado picareta com língua afiada à procura de uma carreira de sucesso. A lábia do conselheiro confortava até mesmo clientes com grandes problemas com a lei. Sob seu ponto de vista, não havia caso perdido, uma prova de sua capacidade em lidar com situações potencialmente ruins.
A aclamada série encerrou-se originalmente em 29 de setembro de 2013 com um desfecho amargo para a maioria das personagens. Enquanto isso, o criador da série, Vince Gilligan, recebia elogios pelo excelente trabalho de composição do seriado, tanto em roteiro quanto na estética apurada que trouxe maior originalidade ao drama, e logo planejava sua próxima narrativa. Uma história envolvendo um dos personagens de sua maior produção.
Criada em parceria com o diretor Peter Gould, Better Call Saul é o retorno de Gilligan à sua obra de maior sucesso, agora através de um spin-off focando o advogado sem escrúpulos. A obra surge na inevitável sombra deixada pela série anterior com a missão ingrata de estabelecer as mesmas estruturas narrativas – afinal, a equipe criativa é a mesma – mas também apresentar uma história diferente daquela vista anteriormente. A trama retorna seis anos no passado para conhecermos a ascensão do jurista, uma história que em algum momento do futuro se cruzará com a de Breaking Bad. Trata-se de um difícil desafio: primeiro em compor uma série que mantenha a qualidade sem parecer mera cópia; segundo, o público torna-se ansioso por participações especiais, inferências e outros recursos narrativos que explicitem a ligação que há entre cada produção. Evidentemente, comparações são inevitáveis mas também funcionam para observamos o quanto a linguagem das duas narrativas é semelhante, mantendo cinematograficamente uma espécie de fidelidade intrínseca.
Mesmo situada em 2002, espaço temporal anterior a Breaking Bad, a primeira cena é um vislumbre do futuro após os acontecimentos do desfecho do seriado. O preto e branco apresentam-se na observação explícita de um tempo diferente e invadem o cenário adquirindo um tom poético, como se expressassem o sentimento interno de Saul. Um homem criminoso que vive com medo de ser pego a qualquer momento, cujo ponto alto do dia é a nostalgia do passado, quando era um advogado de renome destacando-se em comerciais televisivos à procura de prováveis clientes. Além dessa primeira sequência, as aberturas dos episódios contêm objetos específicos que remetem ao auge do bacharel: gravatas, a lista amarela de telefones com seu anúncio em destaque, o carro luxuoso que dirigia; imagens que se aliam à música e aos efeitos extravagantes nas curtas aberturas.
A primeira temporada, lançada em dez episódios, pode ser dividida em dois atos distintos, sendo o sexto episódio o entreato entre arcos narrativos. A estrutura segue a mesma base de Breaking Bad: apresenta uma personagem principal, James McGill, e depois introduz outro importante personagem, Mike Ehrmantraut, reconhecido rapidamente pelo público como o velho turrão responsável pelo trabalho sujo da trama, formando o segundo núcleo narrativo. Como na dupla White/Pinkman, há um personagem principal cuja história transforma-o em carismático desde o princípio, e um segundo que surge de maneira tímida e, aos poucos, conquista o público. Duas representações diversificadas que equilibram a série em razão das personalidades diferentes de cada papel.
Seguindo a lógica de uma temporada dividida em dois atos, temos o primeiro movimento como abertura e apresentação da personagem, sua vida e dramas iniciais. James McGill é um homem da lei à beira da falência, vivendo dia após dia à procura de clientes que não vêm, trabalhando como defensor público do município em troca de pouco capital. A única família que possui é um irmão doente, sócio de uma famosa firma de advocacia e que permanece trancado em casa com aversão a qualquer onda eletromagnética.
Durante os cinco primeiros episódios, a história se desenvolve para apresentar ao público que o caráter de James McGill é diferente daquele visto em Saul Goodman. Observamos um advogado ainda dentro da lei e preocupado com uma visão levemente moral de fazer o bem. Afinal, não há caminho fácil nos roteiros de Gilligan e sua equipe. Trabalhando em tramas antagônicas, com as tradicionais cenas longas e espaçadas, filmadas com ângulos de visão que acompanham objetos em cena e espaços abertos, nem tudo acontece da maneira mais simples.
A densidade rege o sexto episódio, Five-O, apresentado como entreato desses arcos. Entreato porque modifica a estrutura em relação aos episódios anteriores, utilizando o flashback para trazer à tona o passado dramático de Mike. A alta densidade dramática é uma via de mão dupla, tanto para o ator Jonathan Banks como para o público que, finalmente, observa parte do interior obscuro, outrora lacunar, da personagem. Um dos episódios que sempre será recordado pela modificação estrutural em um momento-chave. Mike é um personagem sem empatia mas que causa impacto. O passado justifica seu distanciamento e coloca-o em um interessante paradoxo: para manter o que resta de seu núcleo familiar, o homem é capaz de fazer tudo que estiver nas mãos. Tanto Mike quanto Jimmy têm à família grande estima, porém o primeiro busca reuni-la enquanto o segundo rompe ainda mais os vínculos que possui.
Após o bom entreato, o segundo movimento foca a breve parceria entre Jimmy e Mike, ao mesmo tempo que dá prosseguimento à história de ambos, demonstrando que o enfoque será novamente uma dupla assimétrica de personagens que definem, de uma vez por todas, personalidade e objetivos. Jimmy se torna motivado a ser um bom jurista, confrontando o irmão, que ainda o vê como um pária; e Mike aceita a importância da família em sua vida com disposição de fazer tudo para que a neta tenha um bom futuro. Estabelecidos o cenário e o comportamento de cada um, o drama se encerra seguindo um recurso tradicional da obra de Gilligan: o anticlímax.
Substancialmente sabemos que não existirá bem ou mal em Better Call Saul, não o conceito delineado e simplista. McGill representa essencialmente o homem bom vindo de um passado obscuro no qual era conhecido como trambiqueiro. A longo prazo, sente que não terá retorno diante desse caráter positivo, evidenciando um mundo às avessas que não traz louros aos bem-afortunados. Uma discrepância que adensa o drama da personagem e retira o maniqueísmo de bom e mau, ou certo e errado.
Com um público oriundo da série anterior, é necessário um equilíbrio entre o que é tradicional para ambas e o que essa pode trazer de novo. O público sempre torna-se ansioso por participações especiais e inferências da história anterior. Evitá-las seria o melhor para a produção, a fim de que ela possa desenvolver sua própria identidade. Mesmo que Albuquerque seja uma cidade pequena, não são necessárias coincidências para chamar o público: a qualidade do produto anterior já o cativou suficientemente para começar a assistir ao novo drama, mas depende desse novo início a motivação para que o espectador permaneça à frente da TV. É essa consciência que os roteiristas devem ter para não entregar tudo o que o público deseja, e dessa forma não diluir a trama.
Mantendo a estrutura narrativa, o enfoque dramático e o estilo de filmagem, Better Call Saul entrega uma boa primeira temporada. Ainda que demonstre laços com a série anterior, prova-se eficiente em seu objetivo de apresentar um novo ângulo dos personagens conhecidos. Para evitar que a série também se torne uma das mais baixadas ilegalmente pela rede, o canal AMC desenvolveu uma boa parceria com a Netflix, e um dia após a exibição no canal, às segundas-feiras, o episódio é disponibilizado no sistema online, chegando também ao Brasil com apenas um dia de atraso. Uma boa saída para evitar o download desenfreado e mais um sinal de que os canais televisivos devem mudar a maneira de lidar com o público para se manterem ativos e próximos das necessidades atuais de seus consumidores.