Um dos trabalhos mais ingratos que se pode ter no mundo do entretenimento é cutucar um clássico, seja por meio de reboot, remake, ou transposição para uma outra mídia. Como então mexer em Fargo, o excelente filme dos irmãos Coen, que aqui produzem a série. Fargo, o filme, conta a história de uma pequena cidade na Dakota do Norte onde uma série repentina de assassinatos é desencadeada pelo acordo desastrado de um vendedor de carros que planeja sequestrar sua esposa e assim conseguir o dinheiro do resgate de seu detestável sogro, mas que precisa lidar com as adversidades e inteligência determinada de uma policial grávida.
E assim, tão inesperado quanto os acontecimentos da série, Fargo se estabelece como a melhor série de 2015, não só por concorrer a diversos prêmios, mas principalmente por conter aspectos cinematográficos com qualidade vista apenas em alguns poucos longas-metragens, quanto menos na TV.
Simplesmente tudo parece estar no lugar, e o grande mérito desta ousadia está em no criador e roteirista da série Noah Hawley, que dirige o primeiro episódio e roteiriza os demais e faz um trabalho irrepreensível.
Fargo se passa na pequena Bemidji, em Minesota, e conta a história de Lester Nygaard, brilhantemente interpretado por Martin Freeman (O Hobbit, e a série Sherlock Holmes), um agente de seguros inseguro e passivo, sem força para revidar a qualquer ataque que seja, inclusive de sua esposa que vive a compará-lo com seu irmão mais novo e bem-sucedido. Tragado pela cidade e sua mediocridade, Lester parece estar sempre à beira de um colapso emocional. Frágil, em certo dia reencontra um antigo colega da escola o qual relembra os episódios de bullyng que praticou contra Lester, bem como um breve enlace amoroso com sua esposa. Com medo, Lester acaba se machucando, e no hospital se depara com uma figura estranha com olhos de tubarão e personalidade cínica chamada Lorne Malvo. O personagem interpretado por Billy Bob Thornton (Papai Noel às Avessas, Na Corda bamba), magnético como sempre.
Rapidamente numa conversa, Lester se abre e deixa em aberto a estranha proposta de auxílio através do assassinato de seu agressor. Mas este pequeno encontro desencadeia uma série de mortes que ultrapassam os limites geográficos.
Tudo isso é investigado pela ainda jovem, mas brilhante Molly Solverson (Allison Tolman), que desata os nós e relaciona Lester com Lorne Malvo. Tudo isso com bom trabalho policial e inteligência, mas sem jamais ser levada a sério pela atrapalhada força policial da cidadezinha.
Como uma extensão do filme original, a série estabelece a região e Fargo e seus condados como uma espécie de fenda moral, um local onde aquilo que pode dar errado certamente dará errado. Um cotidiano absorvente que por algum motivo se mostra quase surreal, inclusive ao analisar a cadeia dos acontecimentos. Outra característica trazida do filme é que existem pessoas extremamente lúcidas carregando a trama, permitindo que não haja qualquer tipo de raio de manobra para que o roteiro não subestime a força de sua narrativa e o espectador.
A escala crescente de violência funciona como motor da trama, que mais do que envolver algum mistério, ou coisa assim, fala do desenvolvimento dos personagens, todos frente àquelas situações. Assim como o filme que deu origem à série não é sobre o que irá acontecer, mas sim como irá acontecer. Sem recorrer à pirotecnia ou tramas rocambolescas, tudo é relativamente simples de acompanhar, mas feito de forma a se comunicar continuamente com o espectador que poderá vir a ter empatia com qualquer um daqueles personagens em seus dilemas morais, pois exatamente todos os personagens da trama são muito bem escritos.
Outro destaque está na escolha dos diretores, com destaque nos episódios 7 “Who Shaves the Barber?” na direção, que traz um humor inspirado e envolvente, bem como soluções de cena geniais; para o episódio 9 “A Fox, a Rabbit, and a Cabbage” que consegue alavancar ainda mais uma história que em nenhum momento empalidece e segue em frente com determinação ímpar, algo que pode enfraquecer no caso de algum ponto anti-climático. Aqui a série se coloca em um estado introspectivo, mas mantendo a força de sempre. E por fim, o Season Finale “Morton’s Fork“, que consegue amarrar toda a trama de maneira simples e extremamente recompensadora, novamente demonstrando que a luta moral com o acaso é parte inerente daquela região e a aura quase surreal da neve intensa, onde o clima inóspito marca a população que se perdeu no tempo e ainda acredita ser tão pura quanto a neve, mesmo que constantemente manchada pelo vermelho do sangue.
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Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.