Se você é cristão ou judeu, tanto faz, precisa reconhecer que a Bíblia é uma fonte privilegiada de referências no universo cultural ocidental. Mas a série Luke Cage, da Netflix, usa e abusa deste recurso bem mais diretamente do que costuma ocorrer.
O nome original do herói é Carl Lucas e depois é mudado para Luke Cage, o que se manteve foi a referência ao evangelista que aparece, primeiro na mesma forma que usamos no Brasil, e depois no formato traduzido para o inglês (Luke). Lucas foi um médico grego e é representado na tradição iconográfica como um touro. Luke Cage, ou gaiola de Lucas, em tradução livre, parece mesmo um touro, que representa a força extrema, preso em uma gaiola de tramas, corrupção e da própria resistência do herói em recorrer à violência.
Mas acredite, esta é a referência mais suave. Flashbacks mostram que Pastor Lucas não conseguia engravidar a esposa e acabou gerando um filho em uma funcionária, no entanto, pouco depois deste filho nascer, sua mulher ficou miraculosamente grávida e ele teve um filho legítimo, Luke Cage, chamado por todos de “bebê milagre” e passou a desprezar o filho mais velho, ao qual sequer deu seu nome.
Os irmãos eram amigos na juventude, mas depois brigaram devido à proteção do Pastor somente em relação ao legítimo. O filho abandonado, Willis Stryker ou Kid Cascavel, não deixou por menos e utiliza todos os mais violentos recursos para acabar com o queridinho do papai. E tem mais, para cada ação, uma citação bíblica de brinde.
Ok, já conhecemos esta história. Abraão não consegue engravidar sua esposa e sua criada tem um filho dele, Ismael, que é desprezado pelo pai quando miraculosamente sua esposa engravida, já muito velha e nasce Isaac. Ismael e sua mãe, abandonados, partem.
Na tradição, reconhece-se que os descendentes de Ismael, ou ismaelitas, são os árabes, notoriamente identificados com os muçulmanos. Ora, não é deste circuito que advém uma importante massa de ameaças terroristas (recursos violentos) atacando o ocidente (herdeiros mais ou menos diretos do filho do papai, Isaac)?
Seria a Marvel e Netflix fazendo mais um discurso clichê à lá Trump contra os árabes terroristas contra os bonzinhos ocidentais? Uma referência persistente não me deixa crer. A abertura da série e a rua em que grande parte da trama se desenrola tem o retumbante nome de “Malcolm X”, um importante líder da luta negra contra a segregação nos EUA e que era muçulmano e defendia a separação entre brancos e negros por meio de táticas violentas.
Se noutro tempo Malcolm X foi transmutado em Magneto, violento e pró-separação, pela Marvel, nos dias atuais já é bastante consistente o caráter ideológico do “esquecimento” dos últimos dias de Malcolm, em que ele abandonou a tática violenta e a proposta de separação de negros e brancos e concentrou-se no propósito de combater as desigualdades sociais.
Talvez uma chave de leitura para Luke Cage seja essa, os ismaelitas estão atacando com tudo, mas a saída não é por aí, não é o ocidente seu inimigo e sim o sistema. Ei, senhores muçulmanos, vocês não precisam ser convertidos, nem ter seus territórios ocupados pelo imperialismo, não é o que estamos defendendo, sejam vocês mesmos, mas ouçam seu irmão Malcolm X.
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Texto de autoria de Lucelmo Lacerda.