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  • Review | Os Defensores – 1ª Temporada

    Review | Os Defensores – 1ª Temporada

    Após a estreia de Agentes da S.H.I.E.L.D, a primeira vez que se teve notícia de um novo seriado em que heróis da Marvel que não apareceriam no UCM – Universo Cinematográfico Marvel foi em 2013, quando foi anunciada uma parceria entre a Disney e a Netflix. Seria produzido então, uma temporada para maiores com um dos heróis mais queridos da Marvel: o Demolidor. A ideia era desenvolver a série do homem sem medo, respeitando a sua essência apresentada nos quadrinhos, se afastando e colocando, de vez, uma pá de cal por cima do túmulo da adaptação estrelada por Ben Affleck. Obviamente, o projeto não era simplesmente trazer o Demolidor para as telas, mas fazer com a Netflix o mesmo que a Marvel fez nos cinemas, criando um bloco maciço de heróis, com seus filmes solo e, consequentemente, colocando esses heróis juntos em tela, como aconteceu com os Vingadores. Tinha como objetivo reunir os Defensores para uma grande temporada. Além de Demolidor, que, à época, ganhou duas temporadas, Jessica Jones teve seus momentos de glória, assim como Luke Cage e, posteriormente, Punho de Ferro.

    Os primeiros trailers levaram o público à loucura, principalmente por causa da trilha sonora, embalada pelo contrabaixo e guitarra característicos, somada à voz única de Kurt Cobain em Come As You Are, uma clássico do Nirvana, e também pela interação entre Matt Murdock, Jessica Jones, Luke Cage e Danny Rand, personagens com características e humores extremamente heterogêneos, que nas imagens rendiam diversas alfinetadas e zoações, principalmente vindas de Jones, que quem a conhece sabe que se trata de um ser insuportável (no bom sentido).

    Era tudo tão promissor que a decepção, infelizmente foi alta.

    Os personagens seguem suas vidas exatamente dos pontos em que elas pararam em seus próprios seriados. Danny Rand, o Punho de Ferro (Finn Jones), continua viajando pelo mundo, junto de sua escudeira, Colleen Wing (Jessica Henwick), caçando o Tentáculo, sendo que, em sua última empreitada, o coloca de volta a Nova Iorque para uma investigação. Luke Cage (Mike Colter) deixa a prisão e volta para o Harlem, onde fica sabendo que jovens do bairro estão desaparecendo misteriosamente. A detetive particular Jessica Jones (Kristen Ritter) recebe uma ligação misteriosa sobre o desaparecimento de um funcionário de uma empresa que pode estar metida num perigoso empreendimento. Tudo isso acaba chamando a atenção da policial Misty Knight (Simone Missick), que prende Jones. É quando o advogado Matthew Murdock (Charlie Cox) entra em cena para defender a heroína mal humorada. Enquanto isso, somos apresentados a quem parece ser a principal vilã da série, Alexandra, vivida de maneira espetacular por Sigourney Weaver, e que parece ser a líder do Tentáculo, que até então não tinha aparecido em cena.

    Infelizmente demora para vermos todos os heróis juntos em cena. Claro que eles se encontram de maneira separada e isso rende bons momentos, como a primeira vez que Luke Cage enfrenta o Punho de Ferro, mas não demora muito para percebermos que os quatro, na verdade, estão investigando o mesmo assunto, que envolve aquele enorme buraco no chão que vimos na segunda temporada de Demolidor.

    Infelizmente, a série tem sérios problemas de ritmo e se torna muito arrastada em diversos momentos, tendo como seu melhor momento a primeira vez que os quatro se encontram, o que rende uma pancadaria em modo cooperativo, pois precisam fugir de um determinado local. Nem mesmo o retorno de Stick (Scott Glenn), enche de esperança os mais otimistas. Os ótimos trechos do trailer aparecem numa única cena e as piadas e alfinetadas mencionadas acima, já nem possuem tanto peso e graça. Outro ponto que deixou a desejar, foi em algo em que todos os heróis tem de melhor: a luta. Ora, Murdock é praticamente um ninja sinistro, tendo habilidades absurdas na luta, assim como Rand na arte do Kung Fu, aliado com seu punho, somados a Cage e Jones que sempre foram bons de briga. Mas em Os Defensores, as lutas são todas sem graças e muito mal feitas. Ok, não seria justo falar mal feitas, mas totalmente aquém do que se espera quando se trata desses personagens, principalmente quando se trata do Demolidor, cujas as sequências de luta da primeira temporada são fantásticas. Outro ponto que atrapalha e que é algo perdoável é a ausência de uniformes, o que limita a interatividade de Murdock com o restante do elenco, uma vez que o Demolidor é o único de fato a usar um traje de herói.

    Na série, não sobrou espaço para os coadjuvantes. Misty (que aqui tem uma história de origem) e Colleen são os mais acionados e possuem bons tempos de tela, ao contrário dos queridos Claire Temple (Rosario Dawson), Foggy Nelson (Elden Henson), Karen Page (Deborah Ann Woll), Trish Walker (Rachael Taylor) e Malcolm Ducasse (Eka Darville), que ficam boa parte do tempo escondidos no departamento de polícia para que se mantenham seguros.

    E para piorar a situação, a Disney está desenvolvendo seu próprio serviço de streaming e os seriados solo vem sendo cancelados de maneira implacável e será muito difícil ver os Defensores em tela novamente. Precisamos torcer para que haja uma espécie de migração dos atores, saindo da Netflix e indo para a casa do Mickey Mouse. Só assim para vermos os heróis reunidos novamente, numa, quem sabe, segunda chance. Ainda assim, é uma série que vale a pena ser conferida.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

  • Review | Luke Cage – 1ª Temporada

    Review | Luke Cage – 1ª Temporada

    Situado no Harlem, Luke Cage, em sua primeira temporada representa um outro ângulo da parte urbana do universo audiovisual da Marvel Comics, ainda que tenha muitos paralelos com o que já foi visto nas séries do Demolidor e Jessica Jones. Desde o começo, Luke Cage (Mike Colter) é mostrado como um homem humilde, que ganha a vida lavando pratos e trabalhando como subalterno na barbearia de Henry ‘Pop’ Hunter (Frankie Faison). Ele se esconde atrás da aparente normalidade, mas guarda características do chamado exército de um homem só.

    A rotina de Luke é a de um homem que tem serviço duplo, um como homem comum que tenta viver seus dias e outra como vigilante, que aos poucos começa a agir mais e mais graças as ações criminosas do bandido Cornell Stokes (Mahershala Ali), apelidado originalmente de Cottonmouth (ou Boca de Algodão, na tradução brasileira).

    Cornell é influente na comunidade, mas essa face dele é claramente um despiste para suas ações criminosas, semelhante e muito com o que acontece na máfia ítalo-americana que se instalou em Nova York. Paralelo a isso, Luke também presta serviço a um lugar que serve de fachada para os negócios do vilão, e lá que ele conhece Misty Knight (Simone Missick), uma mulher que depois se revela como policial.

    Cage recebe oferta para se tornar segurança do restaurante asiático que salvou mas ele recusa. Esse aliás é só mais um dos estereótipos evocados e desconstruídos pelo showrunner Cheo Hodari Coker e sua equipe de roteiristas. Luke claramente não quer ser mais o leão de chácara bombado. Em outros momentos ocorrem outras desconstruções de arquétipos, como quando Misty tenta se enturmar com os jovens jogando basquete, ou com acréscimo de Rosario Dawson na série onde seu personagem, a  Enfermeira Claire começa sendo assaltada assim que retorna ao Harlem, para logo depois ela mudar o paradigma de moça indefesa revidando ao bandido a violência sofrida. A todo momento a narrativa tenta afeiçoar público e personagens, normalmente de modo bastante lento.

    A realidade é que apesar do bom começo, o seriado não mantém seu folego. A fórmula se desgasta rápido, e mesmo as coisas que antes funcionavam passam a perder força na metade final. Os dramas se tornam enfadonhos, e o bom vilão que Cornell se tornou é deixado de lado para a entrada de um antagonista não tão carismático quanto o anterior. Cottonmouth tem ligação no passado com Bob, ele tem realmente uma motivação para invadir o cotidiano de Luke, já o outro não, é apenas um personagem caricato, que parece ter sido retirado de um filme de ação genérico dos anos oitenta, o que é uma pena, pois tanto o ator Erik LaRay Harvey quanto seu personagem Kid Cascavel (no original era Willis ‘Diamondback’ Stryker) tinham potencial para desenvolver ainda mais seus dramas.

    A parte do passado do vigilante é bem mostrada no início, na cadeia e onde sofre os experimentos que lhe deram as habilidades que possui. Lá, quando ainda era chamado de Carl Lucas ele tinha um visual como a das fases clássicas da sua revista, com cabelo black power e com uma tiara metálica em alguns momentos. O problema é que a tentativa de fazer ele se reabilitar, remontando o momento em que ele ganhou os poderes é bastante fraca e feita de uma maneira estranha. A série recorre a saídas fáceis para resolver os problemas da segunda metade da temporada.

    A abordagem da trama é lenta demais, os ganchos nos finais dos episódios ou são fracos ou inexistem e a fórmula demora a engrenar, sem falar que o Luke Cage é um personagem um tanto caricato em sua origem, mas divertido ao extremo, e nessa versão já se mostra como alguém bastante soturno. A fuga da caricatura blackxploitation só acontece quando é conveniente, ao mesmo tempo em que ele não é o “super malandro” ele também é um homem mulherengo, estereotipo que para muitos soa viril, mas também traz conotações pejorativas. O fato de a Netflix Marvel não assumir em seus seriados que aquilo é um produto de super-herói pesa ainda mais nessa versão que Colter assume, por não saber escolher nem como uma exploração dramática,  muito menos como produto de adaptação fiel aos quadrinhos.

    https://www.youtube.com/watch?v=ytkjQvSk2VA

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  • Luke Cage: Uma Análise Bíblica

    Luke Cage: Uma Análise Bíblica

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    Se você é cristão ou judeu, tanto faz, precisa reconhecer que a Bíblia é uma fonte privilegiada de referências no universo cultural ocidental. Mas a série Luke Cage, da Netflix, usa e abusa deste recurso bem mais diretamente do que costuma ocorrer.

    O nome original do herói é Carl Lucas e depois é mudado para Luke Cage, o que se manteve foi a referência ao evangelista que aparece, primeiro na mesma forma que usamos no Brasil, e depois no formato traduzido para o inglês (Luke). Lucas foi um médico grego e é representado na tradição iconográfica como um touro. Luke Cage, ou gaiola de Lucas, em tradução livre, parece mesmo um touro, que representa a força extrema, preso em uma gaiola de tramas, corrupção e da própria resistência do herói em recorrer à violência.

    Mas acredite, esta é a referência mais suave. Flashbacks mostram que Pastor Lucas não conseguia engravidar a esposa e acabou gerando um filho em uma funcionária, no entanto, pouco depois deste filho nascer, sua mulher ficou miraculosamente grávida e ele teve um filho legítimo, Luke Cage, chamado por todos de “bebê milagre” e passou a desprezar o filho mais velho, ao qual sequer deu seu nome.

    Os irmãos eram amigos na juventude, mas depois brigaram devido à proteção do Pastor somente em relação ao legítimo. O filho abandonado, Willis Stryker ou Kid Cascavel, não deixou por menos e utiliza todos os mais violentos recursos para acabar com o queridinho do papai. E tem mais, para cada ação, uma citação bíblica de brinde.

    Ok, já conhecemos esta história. Abraão não consegue engravidar sua esposa e sua criada tem um filho dele, Ismael, que é desprezado pelo pai quando miraculosamente sua esposa engravida, já muito velha e nasce Isaac. Ismael e sua mãe, abandonados, partem.

    Na tradição, reconhece-se que os descendentes de Ismael, ou ismaelitas, são os árabes, notoriamente identificados com os muçulmanos. Ora, não é deste circuito que advém uma importante massa de ameaças terroristas (recursos violentos) atacando o ocidente (herdeiros mais ou menos diretos do filho do papai, Isaac)?

    Seria a Marvel e Netflix fazendo mais um discurso clichê à lá Trump contra os árabes terroristas contra os bonzinhos ocidentais? Uma referência persistente não me deixa crer. A abertura da série e a rua em que grande parte da trama se desenrola tem o retumbante nome de “Malcolm X”, um importante líder da luta negra contra a segregação nos EUA e que era muçulmano e defendia a separação entre brancos e negros por meio de táticas violentas.

    Se noutro tempo Malcolm X foi transmutado em Magneto, violento e pró-separação, pela Marvel, nos dias atuais já é bastante consistente o caráter ideológico do “esquecimento” dos últimos dias de Malcolm, em que ele abandonou a tática violenta e a proposta de separação de negros e brancos e concentrou-se no propósito de combater as desigualdades sociais.

    Talvez uma chave de leitura para Luke Cage seja essa, os ismaelitas estão atacando com tudo, mas a saída não é por aí, não é o ocidente seu inimigo e sim o sistema. Ei, senhores muçulmanos, vocês não precisam ser convertidos, nem ter seus territórios ocupados pelo imperialismo, não é o que estamos defendendo, sejam vocês mesmos, mas ouçam seu irmão Malcolm X.

    Texto de autoria de Lucelmo Lacerda.

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  • Resenha | Alias

    Resenha | Alias

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    Comandado por Brian Michael Bendis, em uma das iniciativas adultas da Casa das Ideias através do selo que estreava Marvel Max, as histórias de Jessica Jones à frente do título Alias começariam viscerais, agressivas e maduras, já evocando palavras de baixo calão no primeiro quadro sequencial. A primeira interação de Jones com outros personagens estabelece quase todo seu ideário, como investigadora particular, sem freios na língua, de métodos violentos e intolerante a sexismos, fatores que fariam dela uma personagem interessantíssima e alinhada com o novo milênio.

    O trabalho que Jessica executa como detetive particular incorre segredos agressivos revelados, o que faz um dos seus clientes surtar com um ideário machista, tentando agredi-la a troco de nada. O fracasso de seu trabalho atual, tendo que lidar quase sempre com policiais de pensamento tacanho e tosco, e clientes tão grosseiros quanto o primeiro, faz ela se frustrar, fazendo até relembrar sua vida pregressa como agente que usava collant colorido com um pouco de arrependimento, ao contrário de seu discurso pseudo maduro.

    Entre devaneios, entregas sexuais intensas, dúvidas e tédio causado pela natureza de seu trabalho, Jones é franca em sua narração, explicando já no episódio primordial o modo  como opera suas procuras, destacando que gasta mais tempo verificando se o que o cliente fala é verdade do que realizando o trabalho pedido. Os desenhos de Michael Gaydos são um pouco inusuais para quem não está acostumado, ajudando a construir uma atmosfera que mistura a podridão de espírito e caráter, dos que habitam aquele sujo mundo, além de fazer preconizar a aura noir que faria da série algo único.

    O arco Codinome Investigações – nome também da agência autônoma da personagem – é interessante por estabelecer uma relação nada maniqueísta entre Luke Cage e Jones, envolvendo um sujeito que cede às tentações mesmo tendo um relacionamento solidificado. A confusão da moça em estar em uma convivência tão complicada faz com que não enxergue o óbvio, não tendo clarividência sobre a armadilha que a cerca. O aspecto visa gerar humanidade na personagem, mostrando-a como um ser falho.

    Apesar de algumas menções a heróis do mainstream da Marvel, como Capitão America e Matt Murdock, o enfoque é na construção da personagem, que brilha praticamente sozinha, em sua visão tão particular no ínterim da violência que ocorre na cidade de Nova York. Alias demonstra o quão rico é o universo utilizado pela Marvel, sem apelar para fórmulas fáceis, explorando os arredores do micro mundo dos super-seres, focando em quem vive à margem dessa fábula escapista, dando gravidade a esta parcela de seres.

    O segundo arco, Nível B, explora ainda mais a metalinguagem do mundo dos super-heróis, a começar pelo superado “trauma” da protagonista ao estabelecer contato com Carol Danvers, àquela altura detentora da alcunha de Miss Marvel. A partir dali, Jessica se sente mal por ter se envolvido com Cage, e a ainda recebe missões secundárias para encontrar o marido de uma mulher pobre e desconsolada. O alvo era Rick Jones, o sidekick e correspondente ao Forrest Gump do universo Marvel.

    Há uma profundidade em alguns pontos específicos da história que fazem sentir saudade da época em que Bendis escrevia mais despretensiosamente, sem tentar tornar suas histórias produtos populares e grandiloquentes. Alias é repleta de pequenas discussões filosóficas sobre humanidade, simplicidade e notoriedade por motivos fantásticos. Jones é um bom personagem-orelha, o meio-termo entre o homem comum e o meta-humano mega-poderoso, um pária num mundo que se divide entre semi-deuses e meros mortais, tentando a sobrevivência por meio de eventos patéticos e curiosos.

    A Panini lançou uma edição encadernada, que continha os primeiros nove volumes, mas não deu prosseguimento aos outros números lançados no Brasil apenas na revista Marvel Max. A próxima história é curta e brinca com o estilo jornalistico do Clarim Diário em uma entrevista de J. Jonah Jameson com a moça, para então desembocar em um novo arco, sobre desaparecimento de uma mutante, que termina de maneira muito trágica, tão catastrófica que a faz aceitar as investidas do Homem Formiga II, detentor também da alcunha no universo cinematográfico da Marvel, Scott Lang.

    Após aceitar o trabalho de guarda-costas de Matt Murdock, após ele ser acusado de ser o Demolidor, como visto em Queda de Murdock, Jessica passa a discutir com Cage o que houve naquela fatídica noite com ele ao dividir a função de protetor do advogado. Não se tem muito pudor em tratar das carências e da incidência de parceiros sexuais da personagem, tratando-a como normalmente se trata um personagem masculino, sem medo de mostrar um indivíduo sexualmente ativo e falho, viciado em drogas legais, mais humana do que super.

    Intimidade é um arco que começa muito bem, fazendo lembrar o porquê da personagem principal ter se eximido do maniqueísmo presente na vida dos heróis normativos ao se deparar com uma demonstração simples do quanto os populares podem ser mesquinhos. A história se torna interessante pela presença de Mattie Franklin, uma moça que se veste de Mulher-Aranha e que tem uma intensa ligação com J. Jonah Jameson, pessoal o suficiente para fortalecer ataques de seus inimigos profissionais, e emocional a ponto de fazê-lo sentir-se parente sanguíneo da garota que adotaram, apesar de ele e a esposa serem claramente distantes da moça adotada.

    A Origem Secreta de Jessica Jones é uma história curta, mas interessante. Gaydos emula o traço de Steve Ditko e Jack Kirby ao associar o passado de sua personagem com o de Peter Parker, antes de ele ser picado por uma aranha em um acidente radioativo. Seria em uma inocente viagem que sua vida mudaria, com um acidente com as mesmas causas que deram ao Aranha seus poderes, e que cercearam a vida de toda sua família, o que explica o azedume em que a ex-heroína Safira (e Paladina durante um tempo) se insere.

    Os elementos utilizados para remontar a origem da personagem demonstra como seria se o Homem Aranha fosse um personagem voltado para um publico mais adulto, ainda mais repleto de camadas e verossimilhança. A problemática de Jones é bem mais grave, pois lhe falta uma figura de mentor, como era tio Bem com o jovem Peter.

    O último arco, Púrpura, introduz Killgrave, também chamado de Homem Púrpura, o vilão que seria utilizado no seriado da Netflix. As histórias de Bendis só funcionaram pela utilização de suas páginas para construção do ethos da protagonista, só inserindo um antagonista à altura após 23 números. Killgrave parecia já espreitar Jessica antes, além de ter um episódio anterior ligando a heroína a sua derrota.

    A natureza do poder do opositor, de convencer as pessoas a fazer o que ele queria,  não é tão assombrosa quanto seres cósmicos, mas é mortal e atemorizadora no ambiente em que Alias se alastra. As inserções dos desenhos de Mark Bagley deveriam remeter a tempos mais simples e heroicos, mas revelam a manipulação que a então Safira sofria ao tentar enfrentar seu antagonista, dominada facilmente, servindo o tom mais leve de total contraponto à gravidade da perda de controle que a mulher possui.

    A arte de Gaydos prima pelas sombras e por uma rusticidade que ajuda a evocar os sentimentos adultos, tão diferenciados do escapismo que normalmente incorre sobre os quadrinhos da Marvel. Alias só poderia ser tão genial graças ao trabalho do desenhista, que conseguiu inaugurar bem a personagem que ajudou a criar. Toda a ambiguidade vista no personagem vilanesco só funciona pelos tons escolhidos pelo artista, que adere muitas camadas de profundidade na história.

    O destempero da personagem, ao se deparar com o homem que lhe fez mal, a faz rever todo o seu convívio, recorrendo ao mesmo Cage que ela quis longe, aproveitando da companhia dele para desabafar e situar o leitor na grave situação que passou. Apesar do Selo Max ter em seu caráter a temática adulta, o conteúdo contestatório foge da obviedade. Ao tocar no estupro, há um cuidado para não banalizar a questão, tanto que o abuso sexual que a moça sofreu não foi físico, e sim uma violação mental, de consequências tão graves quanto o defloramento carnal, ainda mais grave para a psique da vigilante. O assédio incluía a total perversão das vontades, traição de seus ideais e apelo à degradação moral ao longo dos oito meses em que o vilão fez da moça, refém de suas luxúrias.

    É em um dos episódios de domínio que Jessica quase morre ao defrontar-se com os Vingadores, tentando encontrar o Demolidor, inimigo íntimo do “dominador”, numa confusão mental e de ocaso que quase lhe custou a vida, e que também ambienta sua fobia por collants coloridos. Jones aceita então a missão que seria a de conversar com Zebediah Killgrave, a fim de fazê-lo confessar o assassinato de algumas de suas vítimas fatais. A situação, que se enquadraria somente em um embate filosófico, ganha contornos agressivos quando o “doutor” consegue fugir do encarceramento.

    Púrpura trata o antagonismo com uma arrogância muito carismática, comentando tudo de modo metalinguístico, quase estabelecendo um diálogo com o leitor. O que falta a Jessica em magnetismo visual, sobra a ele, graças principalmente a sua postura charmosa. O modo como ele conduz sua vítima é de uma maestria impressionante, e a construção em cima de um personagem tão antigo impressiona pela criatividade de Bendis em retratar todo o terror que Killgrave exala.

    Ao contrário do primeiro abuso, este é solucionado por escolha e ação da própria Jessica, que consegue, através de uma ação de prevenção, retomar o controle mental de si mesma. O ciclo finalmente se fecha e a redenção de Jones ocorre por seus próprios méritos, em uma atitude que faz alegoria à superação óbvia do trauma, mas não só da questão com Killgrave, também da trajetória torpe que vinha ocorrendo desde a puberdade. O final poderia facilmente incorrer em uma pieguice extrema e adocicada, mas a questão é driblada, fortificada pela falta de cores que Bendis e Gaydos sempre deixaram predominar.

    Apesar de otimista, o desfecho da revista não dá garantias de um futuro fácil para Jessica Jones, ao contrário, acrescenta tons de gravidade, mostrando que seu destino poderia seguir tão trôpego quanto antes. O sucesso de crítica não garantiu uma vida longa à publicação, logo cancelada, tendo ao menos uma história que finda de maneira digna e condizente toda a jornada da vigilante contratada. A trama condiz ao underground do universo mágico da Marvel, e dá vazão a temáticas controversas ligadas ao feminismo, sexualidade e à independência do espírito feminino, em uma atmosfera urbana, crua e visceral que resgata elementos que há muito não eram utilizados e que funcionam inclusive para plateias mais novas.