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  • Resenha | Alias

    Resenha | Alias

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    Comandado por Brian Michael Bendis, em uma das iniciativas adultas da Casa das Ideias através do selo que estreava Marvel Max, as histórias de Jessica Jones à frente do título Alias começariam viscerais, agressivas e maduras, já evocando palavras de baixo calão no primeiro quadro sequencial. A primeira interação de Jones com outros personagens estabelece quase todo seu ideário, como investigadora particular, sem freios na língua, de métodos violentos e intolerante a sexismos, fatores que fariam dela uma personagem interessantíssima e alinhada com o novo milênio.

    O trabalho que Jessica executa como detetive particular incorre segredos agressivos revelados, o que faz um dos seus clientes surtar com um ideário machista, tentando agredi-la a troco de nada. O fracasso de seu trabalho atual, tendo que lidar quase sempre com policiais de pensamento tacanho e tosco, e clientes tão grosseiros quanto o primeiro, faz ela se frustrar, fazendo até relembrar sua vida pregressa como agente que usava collant colorido com um pouco de arrependimento, ao contrário de seu discurso pseudo maduro.

    Entre devaneios, entregas sexuais intensas, dúvidas e tédio causado pela natureza de seu trabalho, Jones é franca em sua narração, explicando já no episódio primordial o modo  como opera suas procuras, destacando que gasta mais tempo verificando se o que o cliente fala é verdade do que realizando o trabalho pedido. Os desenhos de Michael Gaydos são um pouco inusuais para quem não está acostumado, ajudando a construir uma atmosfera que mistura a podridão de espírito e caráter, dos que habitam aquele sujo mundo, além de fazer preconizar a aura noir que faria da série algo único.

    O arco Codinome Investigações – nome também da agência autônoma da personagem – é interessante por estabelecer uma relação nada maniqueísta entre Luke Cage e Jones, envolvendo um sujeito que cede às tentações mesmo tendo um relacionamento solidificado. A confusão da moça em estar em uma convivência tão complicada faz com que não enxergue o óbvio, não tendo clarividência sobre a armadilha que a cerca. O aspecto visa gerar humanidade na personagem, mostrando-a como um ser falho.

    Apesar de algumas menções a heróis do mainstream da Marvel, como Capitão America e Matt Murdock, o enfoque é na construção da personagem, que brilha praticamente sozinha, em sua visão tão particular no ínterim da violência que ocorre na cidade de Nova York. Alias demonstra o quão rico é o universo utilizado pela Marvel, sem apelar para fórmulas fáceis, explorando os arredores do micro mundo dos super-seres, focando em quem vive à margem dessa fábula escapista, dando gravidade a esta parcela de seres.

    O segundo arco, Nível B, explora ainda mais a metalinguagem do mundo dos super-heróis, a começar pelo superado “trauma” da protagonista ao estabelecer contato com Carol Danvers, àquela altura detentora da alcunha de Miss Marvel. A partir dali, Jessica se sente mal por ter se envolvido com Cage, e a ainda recebe missões secundárias para encontrar o marido de uma mulher pobre e desconsolada. O alvo era Rick Jones, o sidekick e correspondente ao Forrest Gump do universo Marvel.

    Há uma profundidade em alguns pontos específicos da história que fazem sentir saudade da época em que Bendis escrevia mais despretensiosamente, sem tentar tornar suas histórias produtos populares e grandiloquentes. Alias é repleta de pequenas discussões filosóficas sobre humanidade, simplicidade e notoriedade por motivos fantásticos. Jones é um bom personagem-orelha, o meio-termo entre o homem comum e o meta-humano mega-poderoso, um pária num mundo que se divide entre semi-deuses e meros mortais, tentando a sobrevivência por meio de eventos patéticos e curiosos.

    A Panini lançou uma edição encadernada, que continha os primeiros nove volumes, mas não deu prosseguimento aos outros números lançados no Brasil apenas na revista Marvel Max. A próxima história é curta e brinca com o estilo jornalistico do Clarim Diário em uma entrevista de J. Jonah Jameson com a moça, para então desembocar em um novo arco, sobre desaparecimento de uma mutante, que termina de maneira muito trágica, tão catastrófica que a faz aceitar as investidas do Homem Formiga II, detentor também da alcunha no universo cinematográfico da Marvel, Scott Lang.

    Após aceitar o trabalho de guarda-costas de Matt Murdock, após ele ser acusado de ser o Demolidor, como visto em Queda de Murdock, Jessica passa a discutir com Cage o que houve naquela fatídica noite com ele ao dividir a função de protetor do advogado. Não se tem muito pudor em tratar das carências e da incidência de parceiros sexuais da personagem, tratando-a como normalmente se trata um personagem masculino, sem medo de mostrar um indivíduo sexualmente ativo e falho, viciado em drogas legais, mais humana do que super.

    Intimidade é um arco que começa muito bem, fazendo lembrar o porquê da personagem principal ter se eximido do maniqueísmo presente na vida dos heróis normativos ao se deparar com uma demonstração simples do quanto os populares podem ser mesquinhos. A história se torna interessante pela presença de Mattie Franklin, uma moça que se veste de Mulher-Aranha e que tem uma intensa ligação com J. Jonah Jameson, pessoal o suficiente para fortalecer ataques de seus inimigos profissionais, e emocional a ponto de fazê-lo sentir-se parente sanguíneo da garota que adotaram, apesar de ele e a esposa serem claramente distantes da moça adotada.

    A Origem Secreta de Jessica Jones é uma história curta, mas interessante. Gaydos emula o traço de Steve Ditko e Jack Kirby ao associar o passado de sua personagem com o de Peter Parker, antes de ele ser picado por uma aranha em um acidente radioativo. Seria em uma inocente viagem que sua vida mudaria, com um acidente com as mesmas causas que deram ao Aranha seus poderes, e que cercearam a vida de toda sua família, o que explica o azedume em que a ex-heroína Safira (e Paladina durante um tempo) se insere.

    Os elementos utilizados para remontar a origem da personagem demonstra como seria se o Homem Aranha fosse um personagem voltado para um publico mais adulto, ainda mais repleto de camadas e verossimilhança. A problemática de Jones é bem mais grave, pois lhe falta uma figura de mentor, como era tio Bem com o jovem Peter.

    O último arco, Púrpura, introduz Killgrave, também chamado de Homem Púrpura, o vilão que seria utilizado no seriado da Netflix. As histórias de Bendis só funcionaram pela utilização de suas páginas para construção do ethos da protagonista, só inserindo um antagonista à altura após 23 números. Killgrave parecia já espreitar Jessica antes, além de ter um episódio anterior ligando a heroína a sua derrota.

    A natureza do poder do opositor, de convencer as pessoas a fazer o que ele queria,  não é tão assombrosa quanto seres cósmicos, mas é mortal e atemorizadora no ambiente em que Alias se alastra. As inserções dos desenhos de Mark Bagley deveriam remeter a tempos mais simples e heroicos, mas revelam a manipulação que a então Safira sofria ao tentar enfrentar seu antagonista, dominada facilmente, servindo o tom mais leve de total contraponto à gravidade da perda de controle que a mulher possui.

    A arte de Gaydos prima pelas sombras e por uma rusticidade que ajuda a evocar os sentimentos adultos, tão diferenciados do escapismo que normalmente incorre sobre os quadrinhos da Marvel. Alias só poderia ser tão genial graças ao trabalho do desenhista, que conseguiu inaugurar bem a personagem que ajudou a criar. Toda a ambiguidade vista no personagem vilanesco só funciona pelos tons escolhidos pelo artista, que adere muitas camadas de profundidade na história.

    O destempero da personagem, ao se deparar com o homem que lhe fez mal, a faz rever todo o seu convívio, recorrendo ao mesmo Cage que ela quis longe, aproveitando da companhia dele para desabafar e situar o leitor na grave situação que passou. Apesar do Selo Max ter em seu caráter a temática adulta, o conteúdo contestatório foge da obviedade. Ao tocar no estupro, há um cuidado para não banalizar a questão, tanto que o abuso sexual que a moça sofreu não foi físico, e sim uma violação mental, de consequências tão graves quanto o defloramento carnal, ainda mais grave para a psique da vigilante. O assédio incluía a total perversão das vontades, traição de seus ideais e apelo à degradação moral ao longo dos oito meses em que o vilão fez da moça, refém de suas luxúrias.

    É em um dos episódios de domínio que Jessica quase morre ao defrontar-se com os Vingadores, tentando encontrar o Demolidor, inimigo íntimo do “dominador”, numa confusão mental e de ocaso que quase lhe custou a vida, e que também ambienta sua fobia por collants coloridos. Jones aceita então a missão que seria a de conversar com Zebediah Killgrave, a fim de fazê-lo confessar o assassinato de algumas de suas vítimas fatais. A situação, que se enquadraria somente em um embate filosófico, ganha contornos agressivos quando o “doutor” consegue fugir do encarceramento.

    Púrpura trata o antagonismo com uma arrogância muito carismática, comentando tudo de modo metalinguístico, quase estabelecendo um diálogo com o leitor. O que falta a Jessica em magnetismo visual, sobra a ele, graças principalmente a sua postura charmosa. O modo como ele conduz sua vítima é de uma maestria impressionante, e a construção em cima de um personagem tão antigo impressiona pela criatividade de Bendis em retratar todo o terror que Killgrave exala.

    Ao contrário do primeiro abuso, este é solucionado por escolha e ação da própria Jessica, que consegue, através de uma ação de prevenção, retomar o controle mental de si mesma. O ciclo finalmente se fecha e a redenção de Jones ocorre por seus próprios méritos, em uma atitude que faz alegoria à superação óbvia do trauma, mas não só da questão com Killgrave, também da trajetória torpe que vinha ocorrendo desde a puberdade. O final poderia facilmente incorrer em uma pieguice extrema e adocicada, mas a questão é driblada, fortificada pela falta de cores que Bendis e Gaydos sempre deixaram predominar.

    Apesar de otimista, o desfecho da revista não dá garantias de um futuro fácil para Jessica Jones, ao contrário, acrescenta tons de gravidade, mostrando que seu destino poderia seguir tão trôpego quanto antes. O sucesso de crítica não garantiu uma vida longa à publicação, logo cancelada, tendo ao menos uma história que finda de maneira digna e condizente toda a jornada da vigilante contratada. A trama condiz ao underground do universo mágico da Marvel, e dá vazão a temáticas controversas ligadas ao feminismo, sexualidade e à independência do espírito feminino, em uma atmosfera urbana, crua e visceral que resgata elementos que há muito não eram utilizados e que funcionam inclusive para plateias mais novas.

  • Review | Jessica Jones – 1ª Temporada

    Review | Jessica Jones – 1ª Temporada

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    O início da nova série da Netflix em parceira com a Marvel Studios começa pelos bueiros e pedaços sujos dos becos nova-iorquinos de Hell’s Kitchen. O produto de Melissa Rosenberg segue muito fiel aos quadrinhos originais de Brian Michael Bendis e Michael Gaydos, associando Jessica Jones à versão primordial de Alias, misturando, de maneira interessante, a atmosfera noir moderna com o estilo cinematográfico dos filmes de ação mais criativos dos últimos anos, e reunindo semelhanças com o ideário visual de Christopher Nolan e Paul Greengrass.

    A escolha de Krysten Ritter para viver a personagem-título não poderia ser mais acertada, uma vez que sua persona é bastante versátil, podendo variar entre a comédia irônica, inteligente e feminista de Don’t Trust in the Bitch in Apartment 23, passando pela figura de femme fatale de sua personagem em Breaking Bad. Jessica é uma mistura de ambos os arquétipos, acrescentando ainda mais camadas à personagem, de moral e comportamento bastante dúbios, fatores que fazem da detetive particular uma personagem que harmoniza uma espécie de sanidade baixa, fruto do ínterim dos poderes sobre-humanos que tem em posse, com uma credibilidade digna de alguém tridimensional e real.

    A aura de sensualidade empregada já no piloto é mérito de sua diretora, S. J. Clarkson, cujo repertório inclui a sexploitation de Banshee e do thriller de serial killer Bates Motel, cujas referências ao incesto já demonstravam uma sexualidade latente no ideário filmográfico da realizadora. A estética dos produtos da Marvel Studios não permitiu maiores audácias, como cenas de sexo mais ardentes entre a protagonista e Luke Cage  (Mike Colter), não deixando claro sequer a famosa cena de sexo anal ocorrida também no número 1 de Alias. A sexualidade foi reduzida, especialmente se comparada a outras séries adultas, visto que, mesmo sem nudez, Sons of Anarchy e semelhantes conseguem exibir mais volúpia do que as tímidas cenas de coito com os amantes vestidos, nesta versão.

    Dois aspectos chamam a atenção logo no início da abordagem. A primeira é a cena de abertura, tão bem encaixada quanto a de Demolidor, contendo elementos visuais que remetem à aquarela que David Mack fazia nas capas de Alias, em referências que parecem belas aos olhos do público geral e que fazem ainda mais sentido para o aficionado. Outro aspecto é a feminilização do personagem Jeri Hogarth, interpretada por Carrie-Anne Moss, adiantando em alguns arcos a parceria, uma vez que, ainda na revista solo, Jessica não tem contato com o empregador dos serviços de aluguel para super-humanos. A mudança de gênero é positiva, aumentado a ideia de um produto de herói feito para um escopo feminista.

    As soluções para associar o vilão à “heroína” são ainda mais assustadoras e adultas na série. Se em Alias a preocupação era em compor um quadro com o universo mainstream da Marvel, no seriado a tônica é de independência, tangenciando questões relativas ao universo urbano, mas sem ser refém deste. O antagonista espreita os detalhes da psique de Jones como uma figura de abuso do passado, cujos detalhes não são inteiramente explicitados, mas que prosseguem em causar danos mentais e emocionais na sua rival. O caso envolvendo uma das investigadas da Jessica faz eco com os primeiros eventos do arco Codinome Investigações, mas tem consequências igualmente trágicas, apesar do desenrolar diferente, plenamente condizente com a temática amadurecida desta faceta do universo audiovisual da Marvel, distante de toda a cor saturada de Vingadores e afins.

    As questões tornam-se mais graves após os assassinatos “induzidos” mostrados no piloto, estabelecendo um caráter de paranoia no entorno de Jessica, ainda mais forte no segundo episódio. De modo gradativo, mostra-se a influência do vilão interpretado por David Tennant, em uma face mais séria de Zebediah Killgrave, ignorando seu visual clássico para estabelecer um personagem condizente com a realidade da Cozinha do Inferno nos seriados.

    A temática da violência contra a mulher é fortificada pela personagem Patricia “Trish” Walker, vivida por Rachael Taylor, substituta do arquétipo de Carol Danvers, que será utilizada em outro produto da Marvel, emulando o estereótipo de amiga inseparável, que tem seu nome ligado a uma vigilante da Marvel, o que faz teorizar sobre seu futuro engajamento em possíveis continuações. A personagem sofre com a “violência fálica” de um homem da lei, dominado pelo mesmo transe com o qual Killgrave atingiu a protagonista.

    Em Alias, o Homem Púrpura era tratado como um personagem mal por essência, mas extremamente orgulhoso e soberbo, que somente cede aos esforços de Jessica para demonstrar o quanto a mulher é diminuta. O cerne desta versão é a obsessão pela personagem-título. Os ataques passam a ser pessoais e com distinção de gênero, agravando os abusos e, claro, universalizando ainda mais o drama mostrado em tela, usando sempre o mesmo articulador como causador de inúmeros tipos de violência.

    Ao contrário do mostrado nos quadrinhos, Jessica não é tão insegura, apesar de todas as dificuldades que a envolvem, as mesmas nas duas versões: a falta de dinheiro para eventos básicos e, claro, a violência abusiva que sofreu – ainda que no seriado as questões sejam ainda mais explícitas. As gravações que servem de narração em off ajudam a montar o cenário de investigações detetivescas, assim como formam uma boa desculpa para o uso do artifício normalmente banalizado.

    A relação da detetive com Bogarth é interessante por se basear em trocas de favores importantes, fazendo lembrar a ausência de maniqueísmo, tanto na trama quanto na teia de relações comuns a mercenários e seus empregadores. A empresária só permite que haja uma procura por supostas vítimas de Killgrave após muita insistência e depois de um pedido que envolve sua vida pessoal e amorosa, situação que beira a chantagem emocional da parte da empregadora, o que faz com que os limites sejam expostos de um modo de fácil ultrapassagem.

    As cenas de banho não são sensuais, já que fazem predominar os ferimentos sob a pele branca, lembretes de danos emocionais e carnais causados por intolerantes raciais, aludindo a segregação normalmente sofrida pelos mutantes no universo das HQs. Apesar de conter pontos um pouco redundantes, a construção da relação de herói e bandido é bem urdida. O incômodo fica por conta dos momentos onde claramente se estica o drama somente para ganhar tempo em tela e bater a “cota” de mais de cinquenta minutos por episódio. O fato em que isto mais ocorre é no estranho romance de Trish com o policial anteriormente manipulado Will Simpson (Wil Traval). A alusão a Síndrome de Estocolmo é interessante, mas demora a se desenvolver satisfatoriamente, ainda que seus resultados (óbvios) remetam a uma doentia relação.

    A série consegue de maneira sui generis harmonizar a fidelidade a HQ, em elementos básicos, ao mesmo tempo em que muda o caráter e essência dos personagens, sem soar falso ou forçado e sem agredir quem gosta de Alias. No entanto, o legado maior do programa é o da libertação, pois mesmo tendo de respeitar os padrões da classificação indicativa, dá vazão à sexualidade de formas diversas, desde triângulos amorosos lésbicos até relações inter-raciais em que somente o sexo importa, sem comprometimentos maiores, além de leve alusões a BDSM e referências à desolação emocional de quem é vitima de abusos sexuais.

    Em tempos onde o feminismo é banalizado e seriamente atacado, a personificação de Killgrave é mais do que necessária, é atual e toca em quase inúmeros elementos ligados às fobias femininas, fazendo dele uma figura de ódio já nos primeiros momentos em que sua menção se faz presente – ainda sem sequer mostrá-lo. A construção de vilão por parte dos produtos dos estúdios Marvel era sempre equivocada, tanto que ao menor sinal de carisma de Loki e da segurança de Wilson Fisk, já havia uma pré idolatria aos personagens, uma vontade de ser elogioso incontida. A sutileza presente no comportamento e condução manipulativa da versão do Homem Púrpura faz fortificar ainda mais o protagonismo ativo e seguro de Jessica, servindo de contraponto masculino agressivo a todo o poderio feminino anunciado em tela, nas figuras das coadjuvantes, seja Trish, Bogarth ou qualquer outra personagem.

    Os apuros de Jones são resolvidos por ela mesma, abrindo uma discussão ainda maior a respeito da responsabilidade, culpa e remorso da parte agressora, questões tão longe do maniqueísmo que fazem desacreditar de que se trata de um seriado da Marvel Comics.

    O saxofone pontua o contraditório pessimismo do epílogo, resultado de uma vitória que não foi boa o suficiente para causar em Jessica uma sensação de completude ou de dever cumprido, já que o heroísmo nunca foi seu alvo, tampouco seu alento. A existência prossegue com uma devastação existencial, grave em todos os sentidos, não aplacada sequer pela vingança obtida, o que faz do texto final algo primoroso por sua complexidade.

  • Resenha | Batman 70 Anos: Volume 1

    Resenha | Batman 70 Anos: Volume 1

    Batman 70 Anos - Vol. 1

    Na celebração dos 70 anos de criação do Cavaleiro das Trevas, a Panini Comics lançou quatro volumes em homenagem ao Morcego. Batman 70 Anos – Volume 1 apresenta um compilado amplo de histórias publicadas em décadas diferentes, demonstrando como a personagem sofreu modificações durante vários períodos.

    Mesmo um leitor de anos das histórias do Batman precisa confiar no editor quando se tratam de edições compiladas. Salvo quem se aprofundou na personagem e conseguiu lê-la em sua totalidade, a seleção é filtrada pela visão do editor, cuja exigência é de que tais histórias não possam ultrapassar as tradicionais 25 páginas. Deixa-se de fora, portanto, a maioria das narrativas de 20 anos para cá em que se difundiram os arcos em diversas edições.

    A capa é dedicada a uma das imagens mais realistas do herói, desenhada pelas talentosas mãos de Alex Ross. O conteúdo apresenta nove histórias, cada uma representada por uma década, salvo a década de 80, com três aventuras.

    A primeira história é a única que foge da cronologia temporal com uma narrativa de 1986, Origens Secretas: Estrelando o Batman da Era de Ouro. É uma abertura interessante se considerarmos que a edição pode ser a porta de entrada para novos leitores. Mesmo contando uma história de um Batman anterior ao contemporâneo, a base de sua origem está presente, sendo uma boa alfabetização-morcego que resume a essência da personagem.

    Professor Hugo Strange e Os Monstros é o primeiro gibi de Batman a ser lançado oficialmente – na primavera de 1940 – e a segunda história a ser apresentada na edição. A questão de escolher uma primeira aventura é arbitrária. Poderia ser a estreia do herói na Detective Comics, mas optou-se por uma das histórias do primeiro número de Batman (1940). Com desenhos de Bob Kane, criador do herói, a trama apresenta o retorno de Strange de maneira simples se comparada às tramas atuais.

    Mais de 100 edições à frente, mesmo tendo estreado quase que em sincronia com Batman, o menino prodígio Robin entra em cena em uma história lúdica. O Morcego ajuda um carro desgovernado e salva a família Jones. De presente, o bebê do casal ganha o nome de Batman e, ao crescer, sente-se impelido pelo senso de justiça. A trama não tem nada do conhecido lado sombrio da personagem e chega a cometer um erro referencial estranho. No interior das histórias, não se passaram dez anos para que o garoto – recém-nascido nas primeiras páginas – alcançasse uma idade suficiente para se aventurar em ser um Batman postiço. Por outro lado, observamos como o herói era visto na época e como os temas eram mundanos, sem uma elaboração maior de sagas.

    Sob este aspecto, há exagero didático. As narrativas, que acompanham os desenhos, ainda não pareciam compostas para o mesmo objeto. Considerando que os quadrinhos engatinhavam na época, é perceptível a falta de arrojo técnico entre texto e imagem, ainda não tão bem integradas neste início. Outro ponto de referência sobre a mudança paradigmática do Morcego é que não havia problema algum com eventuais baixas de vilões, elemento que, hoje, impede Batman de dar um fim definitivo a diversas personagens.

    Publicada em fevereiro de 1963, Prisioneiro de Três Mundos dá um passo além na narrativa, melhor integrada entre desenho e texto e demonstrando talentosamente como uma história de 25 páginas pode ser enxugada em três partes bem desenvolvidas. Indo além dos crimes mundanos, Batman lida com a chegada de um alienígena que o transporta para outra dimensão. Se a história parece diferente de início, ao menos é bem explorada e demonstra bom crescimento narrativo com tramas narradas em paralelo. Há a presença das primeiras encarnações de Batwoman e Batgirl, personagens da Era de Prata que sumiram (recentemente Batwoman foi reintegrada no reboot). Apresenta também um Bruce Wayne tão devotado ao crime que evita deixar-se seduzir pela Batwoman, evidenciando sua retidão em relação ao crime e somente ela.

    Estas histórias também apresentam um recurso não mais utilizado atualmente, o de fazer a primeira página da história uma abertura que apresenta um quadro significativo da narrativa. Nos dias de hoje, as tramas utilizam o flashback narrativo como gancho, porém as primeiras páginas com um desenho impactante eram um bom teaser do que iria acontecer e, sem dúvida, agitaram os leitores da época que folheavam as edições.

    As três histórias seguintes foram lançadas na década de 80 em período anterior a Crise Nas Infinitas Terras. De Quantas Maneiras Pode Se Matar Um Robin traz parte do elemento sombrio que atualmente parece necessário para o funcionamento de uma boa narrativa do encapuzado. A trama é um jogo psicológico entre Batman e um vilão que sequestrou Robin e demonstra quantas formas o menino-prodígio poderia morrer. Novamente, o habilidoso recurso de utilizar capítulos em uma história de 25 páginas é utilizado, dando dinamicidade à trama, além de uma boa dose de suspense.

    Dialogando com a morte dos pais de Bruce Wayne e com a tradição de que Thomas Wayne sempre foi um exemplo dentro de Gotham, O Último Natal do Batman é um retorno ao passado que coloca em xeque a integridade de Thomas. Na época, o herói encapuzado possuía traços mais pesados, com uniforme mais ameaçador e os olhos na máscara funcionando como traços pontudos de um olhar sempre irritado. Helena, sua filha com Mulher-Gato, é o apoio que o ajuda a desvendar se o pai foi um criminoso ou apenas incriminado.

    Todos Os Meus Inimigos Contra Mim! é a primeira menção ao Coringa, o conhecido grande arqui-inimigo do Morcego. Apesar de aparecer somente na quinta história do compilado, o roteiro de Gerry Conway produz um grande plano em que o vilão convoca diversos outros comparsas conhecidos para um ataque definitivo a Batman. A trama marca a 500ª aparição de Batman na Detective Comics, o que explica a reunião épica para a edição. Também marca a primeira aparição de Jason Todd, que se tornaria o futuro segundo Robin. Antes da Crise, a origem de Todd era exatamente a mesma de Dick Grayson, menino-prodígio primordial. A diferença é que é o próprio Grayson que adota o garoto nesta história, terminando em final feliz, com direito à união das personagens de mãos dadas caminhando juntas em um dia ensolarado.

    A primeira história pós-Crise surge seis anos depois, originalmente publicada em The Batman Chronicles 5: uma aventura infantil do pequeno Bruce Wayne e de sua relação com Alfred. Embora demonstre com eficiência o paternalismo do mordomo, a escolha desta história serve como diferencial das habituais tramas do Morcego. Até porque nesta época a maioria das narrativas era dividida em diversas partes.

    Fechando a edição, mais um exercício dentro de muitos que surgiram a partir da origem oficial de Bruce Wayne como herói. Dessa vez, Brian Michael Bendis e Michael Gaydos situam a biografia da personagem em uma história em preto e branco que faz referência direta ao clássico de Orson Welles, Cidadão Kane. Uma bonita história que aproxima os elementos do filme – popular e rico homem é morto e um repórter investiga sua história para uma matéria –, entrelaçado com os amigos e inimigos do Morcego, num interessante final que trata a origem da palavra Rosebud neste contexto.

    Como primeiro volume de uma seleção comemorativa, o início é mais funcional do que seu fim. Como todo compilado, a escolha é limitada, dando-nos a impressão de que muito ficou de fora em razão das páginas dentro das necessárias. Infelizmente, há total falta de textos informativos ou qualquer aditivo que ampliem o brilho desse panorama que, apesar de não parecer completo, é uma edição importante, ainda mais se considerarmos que boa parte desse material nunca saiu em formato americano no país.