Depois de sair do país, José Padilha se dedicou a produções com investimento estrangeiro. Robocop não foi o sucesso que os estúdios imaginavam, mas a parceria com a Netflix em Narcos deu muito certo. Dessa vez, ele é o principal produtor deste seriado brasileiro que trata de uma questão cara ao noticiário local. O Mecanismo tenta desbravar os meandros da investigação, ainda em andamento, da Operação Lava-Jato, baseando-se principalmente na obra Lava Jato – O Juiz Sérgio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil, do autor e jornalista Vladimir Netto.
A série começa polêmica além do material de fonte, uma vez que Padilha — que dirige o piloto — é um sujeito que costuma utilizar muita narração em off, tal qual fez em Tropa de Elite e Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro. Na maior parte dos momentos, as narrações de Marco Ruffo (Selton Mello) e Verena Cardoni (Caroline Abras) soam fracas e expositivas demais. Em vários momentos, as falas antecipam cenas que comunicam por si só, e além disso, há uma tentativa de tornar os personagens da polícia em heróis infalíveis e até beatos, em especial o personagem de Mello, uma vez que Verena é sexualizada (e muito) no decorrer dos oito episódios. A questão da sexualidade também é controversa, herança essa de Narcos, que mostrava cenas sensuais abertamente. Aqui, elas são encaixadas de maneira gratuita, quase em exagero para mostrar que os personagens são humanos. A falta de sutileza, porém, quase soa ofensiva.
A investigação da corrupção que move o Brasil começa por motivos pessoais. Ruffo é conhecido de longa data do doleiro Roberto Ibrahim, interpretado por Enrique Diaz em grandíssima fase e desempenho. Ele é claramente o paralelo com Alberto Youssef, e tal qual em Policia Federal: A Lei é Para Todos, seu personagem é um show à parte, já que todo o carisma que inexiste nos outros personagens, sobra nele. O sujeito espirituoso e corrupto destoa demais do protagonista, um sujeito ranzinza e paranoico, capaz de transmitir a mesma condição para Verena, sua pupila.
Desde o piloto há um maniqueísmo absurdo, chegando ao cúmulo de Verena acenar para um dos vilões corruptos ao ver Marco quebrando a moto de um dos malfeitores. Nem antes e nem depois, a personagem mostrou ter um senso de humor apurado, uma cena composta para imitar certo humor americano, nada parecido com o que se faz no Brasil.
Também é curioso a maneira como foi inserido a origem da série nos créditos. Citada muito rapidamente, em um frame rápido daqueles que, caso o publico pisque, poderá perder a referencia a Vladimir Netto. A escolha por utilizar tal fonte é interessante, uma vez que Padilha normalmente julga atitudes de políticos tanto a esquerda quanto a direita. Aliás, debocha de ambos, tanto de figuras como Michel Temer e Aécio Neves como as de Lula e Dilma Rouseff. Mas a escolha do material base claramente tem um viés bastante crítico aos anos do governo petista.
As figuras históricas do PT — aqui chamado de Partido Operário — são mostradas de forma caricata e muito cínica, não são tão toscas quanto em Polícia Federal: A Lei é Para Todos, mas carecem de carisma igual as versões de Ary Fontoura e Cia. Interessante apontar que ator Arthur Khol, está presente em duas obras recentes envolvendo a política do país. Aqui interpreta João Higino, que é o paralelo com o ex-presidente Lula. Em Real: O Plano Por Trás da História fez o ministro José Serra, à época ainda deputado. Mas diferente do papel do deputado, ele não imita os trejeitos do político, aliás, não chega a ser tão vingativo e rancoroso quanto o Lula de Fontoura, mas é cínico e sem o carisma que é peculiar ao político do ABC paulista.
A trilha sonora é repleta de sucessos, como Bichos Escrotos dos Titãs e Você Me Deve dos Racionais MC. Porém, o problema é a execução delas em cena, atrelada aos homens que financiam as campanhas. A mira das críticas de ambas canções é bem diferente dessa visão maniqueísta e quase infantilizada construída pelo texto de Elena Soarez e Padilha. Mesmo quando se debocha de figuras idolatradas pelos mais conservadores — como o representante do japonês da federal, mostrado como um policial incompetente — há um tímido julgamento sobre as ações da polícia. Fato que nos faz perguntar qual a intenção narrativa da série se comparada a composição de Tropa de Elite? Em Tropa, há uma desconstrução do papel dessas autoridades. Porém, aqui eles são os paladinos e, claro, aliados ao poder judiciário.
A versão alternativa de Sergio Moro é vivida por Otto Junior e chamado de Paulo Rigo. Mostrado como um sujeito vaidoso, afirmação dita com todas as letras. No entanto, quando está em sua intimidade, o juiz é mostrado lendo uma revista de super-herói, com estampa de “O Vigilante”. Ou seja, a visão do seriado é clara: o personagem se enxerga como um justiceiro de histórias em quadrinhos, ainda que sua personificação não seja tão caricata quanto aquela vista na interpretação de Marcelo Serrado em Policia Federal, que também trata da Lava-Jato.
Da parte dos diretores, Padilha é acompanhado por Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs), Marcos Prado (Curumim e Paraísos Artificiais) e Felipe Prado (primeira vez como diretor, foi produtor de Tropa 2 junto a Marcos). A fotografia é assinada por Lula Carvalho e Azul Serra e a podridão do cenário abaixo do patamar político é muito bem exemplificado pelos aspectos técnicos.
O cenário político é caótico, mas a série gasta seus minutos mais focada no núcleo policial em que há um problema terrível de concepção. O sujeito infiltrado, por exemplo, chamado de “contador capiau” (Osvaldo Mil) aparenta ser um sujeito não confiável desde o começo, surpreendendo como investigadores federais não perceberem a dubiedade de sua identidade, ainda mais com pistas tão evidentes, inclusive em relação ao seu local de origem, variando entre Rondônia e Londrina. A situação é tão clamorosa que chega a ser cômica, assim como o plot twist envolvendo Ruffo e a metade da temporada. O roteiro de Soarez diverge demais do que Bráulio Mantovani e o próprio Padilha fizeram em Tropa de Elite. Se vê pouco ou nenhum apego a realidade tangível, mas sim muitos momentos de heroísmo maniqueísta.
Em comum com Tropa de Elite 2, há o argumento, da parte dos acusados, de que as investigações contra corrupção só ocorrem por movimento político em época de eleições. Nesse ponto, o seriado acerta, uma vez que deveria haver o mesmo rigor tanto em momentos de eleição quanto em outros momentos. A questão é que isso é muito pouco e a escolha de Padilha por contar sua historia com a investigação em andamento é igualmente discutível. Há o argumento de que o distanciamento faz com que a palavra evidencie os vencedores na narrativa, enquanto a proximidade temporal gera nuances únicas, e se evita o maniqueísmo, que por sua vez gera demonizações e heroísmos desnecessários. Fato é que a infantilidade encontrada tanto nas posições políticas quanto nas curvas dramáticas não combinam com essa fala. A historia segue, com uma epifania de Ruffo, digna de teóricos da conspiração, e ele percebe o obvio: uma rede de corrupção no Brasil, e isso o faz parecer frágil e redundante como uma criança que acaba de ser desmamada.
O oitavo episódio termina com um gancho, para uma provável segunda temporada, mas seu desfecho é fraco e incorre novamente a questões pessoais com o clássico Juízo Final, interpretado por Seu Jorge, exibido em cena, versão essa já utilizada em outro trabalhos de Padilha. Tem-se a impressão que o destino do país está nas mãos de investigadores cujas intimidades são frágeis. A ideia de fraqueza geral e o ceticismo do povo que os produtores desejam passar é bem diluída em meio a tentativa de soar neutra, fato que obviamente fracassa. O Mecanismo ao menos tem um bom ritmo, provavelmente causando no público a vontade de maratonar os episódios super movimentados. Mas ainda soa como um novelão sem compromisso com a realidade, ao contrario dos outros produtos do diretor.
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