Em entrevista publicada para a saudosa revista Filme Cultura, uma das principais revistas da história do cinema brasileiro que circulou entre 1966 e 1988, Zuenir Ventura questiona Eduardo Coutinho, quando no lançamento de Cabra Marcado para Morrer, se ele havia escrito um roteiro e Coutinho responde dizendo que não tinha escrito, pois tinha apenas o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. Perguntas é o que move a discussão promovida no documentário Anna dos 6 aos 18, de Nikita Mikhalkov.
Assim como para Coutinho, seus entrevistados tem uma importância factual para compor sua história, Mikhalkov utiliza desse mecanismo o seu filme, voltando-se, que parte de cinco perguntas banais feitas feitas à Anna, sua filha, desde os 6 até os 18 anos de idade, repetidas religiosamente, ano a ano ao longo de 12 anos: o que mais a amedrontava, o que mais ela desejava, o que ela mais odiava, o que mais amava e o que ela mais queria naquele momento. De 1980 a 1991, o cineasta repete essas cinco perguntas à sua filha Anna e, por meio delas, traça paralelos entre o crescimento de sua filha, por meio de suas respostas, como também da própria história de um povo e sua terra.
Segundo Mikhalkov, o longa inicia-se da ideia de utilizar um rolo de filme por ano na qual realizaria as mesmas cinco perguntas a sua filha. Dessa forma, dois temas iniciais são peças importantes de análise da obra do diretor: tempo e memória. O tempo, no cinema, é relativo, sendo o trabalho de montagem e edição instrumentos fundamentais para entendermos a construção narrativa de um filme, assim, notamos que a escolha de tais temas não se faz por mero acaso, já que a memória está ligada diretamente a noção subjetiva do tempo, bem como este se relaciona com uma noção de tempo cronológico, linear, ou melhor, histórico.
Ao se trabalhar em um gênero como o documentário é comum pensarmos em algumas práticas corriqueiras, como a utilização de registros, entrevistas e materiais de arquivo para a construção do tema desenvolvido no filme, pouco importando se estes materiais são de caráter público ou privado, pessoal ou anônimo, portanto, novamente nos debruçamos sobre a memória, que é tão cara para Mikhalkov, como se torna evidente em sua narração em off no início do filme, onde ele alega não saber ainda que filme iria fazer, mas sentia, intuitivamente, que poderia ser um documento importante. Dessa forma, utilizando registros de família, e inúmeras imagens conhecidas mundialmente, Mikhalkov cria seu multifacetado documentário para contar um pouco da sua história familiar, mas também dos últimos anos da União Soviética.
Interessante notar como quando Anna é questionada pela primeira vez suas respostas se encontram dentro de um universo típico de crianças, repleto de fantasia, contudo, um ano depois, com o ingresso à escola, seus medos e anseios passam a ser pensados no coletivo, sem saber ao certo os reflexos do um modelo de educação influenciaria os reais desejos de sua filha. A crítica ao modelo soviético se repete ao longo do documentário de modo menos ou mais implícito, como por exemplo, na montagem paralela onde o diretor contrapõe imagens de arquivo do líder soviético Leonid Brejnev de um teatro repleto de pessoas bem vestidas cantando a internacional, intercalada com imagens de pessoas simples dançando na rua, na qual é sobreposto os aplausos à Brejnev no teatro sobre as imagens do povo humilde, uma forma de retirar os aplausos dos líderes e dá-los aos cidadãos comuns. As críticas ao modelo socialista da União Soviética e a midiatização dão o tom da obra ao longo da vida de Anna.
Em 1987, novamente Anna é indagada sobre as mudanças que o país vem sofrendo por conta das reformas políticas e econômicas de Mikhail Gorbachev. Já mais velha e com a abertura do país a iniciativa privada, as transformações em sua filha e na própria sociedade civil são evidentes pelas roupas utilizadas por Anna, seu modo de falar, como também pela inserção de imagens utilizadas pelo diretor, desfiles e concursos de beleza, comerciais de produtos repleto de cores e shows de rock. Curiosamente, em decorrência das reformas de Gorbachev, neste momento Mikhalkov abandona as críticas ao socialismo e passa a criticar todas as mudanças advindas da abertura do país ao capitalismo.
Apesar da proposta inicial do documentário ser registrar os medos e desejos de sua filha no decorrer dos anos, Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo uma exercício de autoanálise na medida em que o filme se desenrola. Por conta disso, é interessante notar como o filme parecer perder o seu foco inicial, naturalmente, isso ocorre num importante momento de transição político-ideológica, substituindo o tom crítico por um ar nostálgico na medida em que vemos o desenrolar da história que culminaria com o fim da União Soviética.
Anna dos 6 aos 18 é acima de tudo um trabalho invejável sobre temas caros como a relação pais-filhos, tempo, transformações políticas e sociais, e além disso, uma aula de montagem e manipulação de imagens por meio de materiais de arquivo, seja público ou privado. Além disso, a postura anticomunista e crítica em relação à União Soviética soa vazia, já que a o declínio do socialismo real não provocou o esperado retorno que o diretor parecia almejar, abordando tais transformações da sociedade num retrato do capitalismo em sua forma mais degradante, concluindo o documentário de maneira desiludida e desesperançosa com o novo sistema político-econômico, mostrando um Rússia tomada por uma epidemia demagógica que engoliu e destroçou os sonhos e o saudosismo de uma época passada, encerrando seu filme com o tema central, o tempo.