A tradição oral sempre esteve presente conosco. Ela, sem dúvida, é um dos ritos mais antigos que ainda carregamos, e através dela, antes mesmo de conseguirmos ler, são passados medos, lições e principalmente as histórias. E é através do interlocutor que essas passam a ganhar vida, mesmo que verdade ou não. Basicamente, é questão de acreditar no que está ouvindo. E é nessa passagem que todo o clima e atmosfera do filme No Coração do Mar, que estreia nos cinemas no próximo 3 de dezembro, constrói sua narrativa.
O cinema do diretor Ron Howard tem se dedicado nas suas últimas obras a relatar histórias reais através de suas produções, e certamente atingiu muitos acertos, como Uma Mente Brilhante, obra na qual realiza uma cinebiografia, ou em conflitos reais como Frost e Nixon e Rush – No Limite da Emoção. Mesmo que hoje possamos perceber com enorme frequência filmes voltados a contar histórias reais, origens de grandes fatos históricos e personagens numa tentativa de ressurgi-los mais uma vez, arrecadando milhões em bilheteria, é muito fácil destacar esses três filmes como obras muito bem realizadas no meio de tantos produtos semelhantes. Mas o que acontece quando ele decide contar uma história que na verdade deu origem a uma obra que é tão poderosa quanto a história que a inspirou?
Na trama de No Coração do Mar, o futuro autor de Moby Dick, Herman Melville (Ben Whishaw) convence o velho Thomas Nickerson (Brendan Gleeson) a contar a história de quando ainda era um marujo (interpretado por Tom Holland) e o que ocorreu de fato por trás da destruição do navio Essex em 1820, que saiu em busca de caçar baleias, comandado pelo capitão George Pollard Jr. (Benjamin Walker) e seu Imediato Owen Chase (Chris Hemsworth)
Já que o filme se passa unicamente no mar, seria mais do que função dessa produção trabalhar bem a construção do que se passa exatamente dentro e fora de um navio. O filme não só faz isso com excelência, mas consegue dosar numa montagem competente a simples busca por um vento favorável como algo completamente emocionante. As cores dos enquadramentos são propositalmente sóbrias nas cenas externas no mar para dar vida ao navio muitas vezes, assim como as cores das roupas do capitão Pollard, dourado das armas da tripulação e dos olhares dos tripulantes.
Infelizmente, como muitas produções hoje carecem de uma imersão fidedigna ao que elas se propõem, existe um excesso de enquadramentos em close nos atores quando é necessária uma cena que exija um movimento mais preciso, ou uma ação coordenada em alguma direção da câmera. E, por outro lado, é muito difícil dizer quando estamos encarando uma baleia por CG ou por uma gravação pré-produzida com uma montagem competente. Vale ressaltar que, apesar da trilha claramente Hans Zimmeriana, ela encaixa perfeitamente nas cenas, assim como os efeitos sonoros da grande baleia branca que aterroriza a tripulação do Essex.
Durante toda a passagem do filme, foi difícil não pensar no fato de que ele por si só já era a metalinguagem de outra história já contada, sendo contada para o seu autor. Os poucos momentos em que os personagens do Essex têm diálogos expositórios sobre sua condição, é muito claro a contraposição com a própria natureza da obra Moby Dick e que se estende até o fim do filme. Seu desfecho, amargo e doloroso, é resultado de uma condição miserável em que alguns poucos seres humanos sobreviveram para contar. Apesar de alguns veículos de comunicação terem divulgado a foto do ator Chris Hemsworth com pouquíssima massa muscular para interpretar o período à deriva da tripulação é possível dizer que o filme não abusa em demonstrar tal aspecto físico, exibindo-o pontualmente durante alguns trechos,
A tradição oral é talvez um dos espelhos mais poderosos que temos para revelar o que se esconde de sombrio no coração do homem; tornar simples palavras em monstros e em assombrações depende unicamente do que existe de mais sombrio em cada um de nós. Quem sabe transpor o que deveria nos atormentar de tamanha forma com palavras em imagens talvez não seja a maneira mais efetiva de contar essa história.
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Texto de autoria de Halan Everson.