No começo da carreira que o tornaria famoso – quando a obra Sandman ainda estava sendo publicada, mas ele ainda não era conhecido por suas outras obras fora dos quadrinhos -, o promissor Neil Gaiman seria contratado pela produtora britânica de TV BBC para ser roteirizar uma serie chamada Lugar nenhum, que estreou em 1996. Mas não é sobre essa obra que falaremos hoje.
A série contou com restrições de orçamento e alguns enganos na produção, que podem ser notados principalmente pela qualidade da direção de fotografia, que não tem uma iluminação boa. A qualidade da filmagem também não é boa e os efeitos são feitos com carinho, mas sem dinheiro. Por causa disso, Neil Gaiman não gostou do resultado da série e sempre achou que poderia fazer algo melhor. E ele de fato fez, recriando a mesma obra em outras mídias, como HQs, e lançando também um livro, em 1996 (que chegou ao Brasil em 2005).
O fato de querer criar uma história digna do que ele imaginou e bem melhor do que o modo como a série foi feita fez com que Neil Gaiman escrevesse o seu primeiro livro, incrivelmente adaptado do roteiro que ele tinha desenvolvido na série, que pouco tempo depois foi publicado com o nome também de Lugar nenhum.
O livro demostra o estilo literário de Neil Gaiman, muito parecido com o que ele usa em Deuses americanos e em outras obras. Podemos ver a falta de informação sobre alguns elementos da história, como em muitos contos de fantasia clássicos. Pelo fato de não ser explicado o porquê e o como, em muitos momentos a história abre para o próprio leitor imaginar o passado de lugares e personagens, o que acaba tornando bem mais fácil de criar cenários interessantes para o livro. Esse recurso é muito bem utilizado no livro porque normalmente essa é a realidade de quem vive em uma cidade (porque, por exemplo, não sabemos quem é a pessoa que tem um nome em uma placa ou local da cidade), mas ele extrapola esse desconhecimento para conceitos de historias fantásticas. Por exemplo, existe um distrito em Londres chamado Angel Islington (Anjo Islington), então Neil Gaiman extrapola o nome do lugar e diz que realmente existe um anjo chamado Islington, e depois revela pela metade detalhes sobre o passado dele em pequenas conversas entre os personagens. Isso é bem usado para passar o clima de uma sociedade dentro de outra sociedade.
O livro também conta com um o clima bem punk inglês, porque Neil Gaiman descreve tudo de forma bem suja, com um visual sempre em farrapos e um clima bem “do it yourself“. A obra adquire uma identidade única (uma fantasia punk), além do leitor sempre ficar imaginando o visual da protagonista de forma especial, já que ela é uma gracinha.
Outra coisa a se destacar é o trabalho de usar o próprio ambiente de Londres, que tem milhares de referências locais muito legais – até porque Neil Gaiman é inglês. Além de já estar acostumado com o ambiente por ser natural da Inglaterra, ele faz um ótimo trabalho criando ainda mais conteúdo com esses ambientes, fazendo brincadeiras e trocadilhos com nomes de lugares e personagens da cidade, e dando um background que eu não sei se são contos malucos e lendas urbanas londrinas, ou se ele tirou tudo da cabeça dele mesmo. Isso tudo para transformar todos os lugares (isso mesmo, os lugares) em personagens interessantes, imagine os personagens normais…
São legais as mensagens que o livro passa também: a existência de uma sociedade dentro de um sociedade, de pessoas esquecidas, porque simplesmente é mais conveniente esquecer essas pessoas. Mas, apesar de tudo, por eles serem esquecidos, eles acabam sendo mais livres do que as pessoas que vivem na Londres de cima, onde todos são presos aos seus itens de consumismo, ou a vidas que eles não conseguem largar ou se adaptar, como era o personagem principal. A história chama o leitor a refletir mais sobre o mundo à sua volta, mais localmente, e sobre suas histórias de certa forma esquecidas ou que fazemos questão de não saber.
Quanto aos personagens, temos que o principal é o que representa o personagem que guia o leitor da melhor forma possível nesse universo. O personagem principal carece de uma personalidade mais forte, mas ele foi feito para representar o londrino médio, o leitor do livro, então não podia ser alguém muito diferente do normal. Ele tem algumas características que o tornam diferente das pessoas comuns, mas só dando a ideia de que algo o diferencia e que por isso ele vai entrar na história. Os personagens restantes são personificações de lugares ou de ideias, e eles são tão marcantes quanto pensamos que eles sejam, já que Neil Gaiman deixa muito da personalidade deles para que o leitor imagine.
Esse livro tem uma história muito bem desenvolvida, e tudo se acerta de uma forma bem mais natural do que em outras obras de Neil Gaiman, como Deuses americanos. Como este é o primeiro livro de Neil Gaiman, em resumo, Lugar Nenhum é mais obrigatório do que outras obras do autor – em minha opinião, claro.
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Texto de autoria de Psycho Mantys.
O Gaiman está entre meu top 5 de autores preferidos.
Mas ainda falta esse pra ler, gostei da resenha.
Valeu Fabio!!!