É dito que abrir um livro reitera não só a magia da experiência puramente imersiva de se voltar no tempo, e acompanhar aqui as primeiras aventuras de Mickey Mouse ainda sem a sua turma, logo quando foi criado, como também reforça a importância da literatura, no caso a mídia dos quadrinhos, em emoldurar e artisticamente simbolizar a época em que se está presente, e faz retratar. Seja por meio da arte das gags, em que se provoca o riso e a descontração por meio da irreverência de piadas visuais, ou por evidenciar um zeitgeist, em certos momentos, que nos parece totalmente ultrapassado, com suas normalidades e seus preconceitos, é indiscutível o prazer de viajarmos a idos mais simples, em que o humor ainda tinha na sua simplicidade histriônica, suas cores, sua diversão e nas suas onomatopeias os seus principais triunfos de grande e duradoura paixão.
Os Anos de Ouro de Mickey – Volume 1 chegou tal um monumento da nostalgia para conservar o encanto (e a importância para a cultura pop) de um dos personagens norte-americanos mais populares e amados do século XX, sendo este a criação máxima tanto do famoso Walt Disney, quanto de seu co-criador, o igualmente genial Ub Iwerks. Diz-se também que a genialidade apenas surge através do trabalho duro, e desde 1929, ambos trabalharam juntos na sementinha de um império que, em 2019, se consolida como uma das dez maiores marcas do mundo. Ainda nos primórdios de um entretenimento já muito remodelado, Disney e Iwerks foram parceiros por poucos anos nos estúdios Disney, antes do segundo seguir seu rumo. Contudo, a breve combinação de talentos deixou sua marca histórica em tiras de quadrinhos que serviram de base do que chamamos de cultura popular. Mickey já passou pelas mãos de diversos artistas, cada um com seu traço e sua visão de mundo, mas nunca com o mesmo senso de forte liberdade criativa que o começo dos anos de 1930 tão bem permitiam.
Isso porque a Disney não se orgulha, hoje, de certos desenhos ou tiras ancestrais cujos temas são percebidos como polêmicos e até mesmo ofensivos, sendo parte então de sua extensa cronologia, e mesmo que representativos a mentalidade de uma época que ficou para trás. As primeiras histórias de Mickey, por outro lado, usam e abusam de outras características relativas ao tempo que foram criadas, tais como a crise na economia dos EUA após o grande desastre na bolsa de valores de Nova York, em 1929, e a hostilidade entre as pessoas que deixam de se respeitar, muitas vezes, para conseguirem sobreviver no cenário da Grande Depressão, em que muitos cidadãos americanos estavam literalmente passando fome. Sem achar graça deste contexto, mas aproveitando-se do drama da situação, vemos neste primeiro volume dos seus Anos de Ouro o valente e astuto Mickey enfrentando problemas e caindo em artimanhas que muitos dos seus leitores também passavam, mas achando no poder do riso o melhor remédio para se enfrentar uma dura realidade, impossível de se ignorar.
Afinal, como representar melhor a sensação de desespero das pessoas diante da miséria financeira, na primeira grande crise do capitalismo, do que colocar Mickey sendo cozinhado num caldeirão de canibais, como vemos na ótima história Mickey na Ilha Misteriosa, ou ainda, sendo enganado de várias formas, junto de sua namorada Minnie, pelo cafajeste Chico Charlatão, no delicioso conto homônimo de 1930? Isso porque a arte não precisa ser óbvia ou apolítica, e seus leitores tampouco ingênuos. Assim, acompanhamos os primeiros passos de um rato desde sempre visto como um jovem adulto ultra curioso, e que se mete em mil confusões para tentar se livrar delas logo em seguida com seu grande coração, e a esperteza que os destemidos sempre carregam mundo afora. Em uma coletânea primorosa neste primeiro volume da editora Abril, lançado no Brasil em 2017, notamos o quanto o personagem, seus amigos e vilões, todos icônicos o suficiente para serem amados por todos os públicos, e gerações, leva consigo também a essência da empresa Disney, e de tudo o que viria em quase cem anos de história a ser produzido, e aprimorado, por uma marca brilhante o bastante para habitar os corações do passado, presente e futuro.
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