A Era de Ferro dos Quadrinhos
A década de 1990 foi um período conturbado para as hqs de heróis. Uma verdadeira explosão de comic shops nos Estados Unidos levou um grande público a consumir cada vez mais revistas novas, com heróis que fugiam dos padrões morais das décadas anteriores. Resultado direto de uma nova visão de mercado adotada dez anos antes, as editoras perceberam que séries fechadas poderiam render boas cifras. Além disso, o público havia tomado conhecimento da raridade de exemplares “número um” e seus valores astronômicos atingidos (uma cópia de Action Comics nº 1, com a primeira aparição do Superman, pode chegar hoje a 1 milhão e meio de dólares). Assim, uma grande especulação fez com que qualquer exemplar com o número 1 estampado na capa vendesse horrores, na esperança de que um dia aquilo valeria alguma coisa. Na ânsia de capitalizar em cima dessa tendência, as editoras despejaram nas comic shops cada vez mais “primeiras edições” de revistas com qualidade duvidosa. Essa tendência, junto com a necessidade dos autores e artistas de terem maior poder criativo sobre seus personagens, levou ao surgimento de editoras independentes, sendo a Image Comics a principal delas.
As histórias de super-heróis de então tiveram seus maiores artistas criando cada vez mais novos personagens, que não estavam diretamente ligados a nenhuma cronologia pré-existente. O impacto visual das páginas passa a ser mais importante do que as histórias, e assim vários desenhistas começaram a roteirizar seus próprios quadrinhos. Extremamente violentos, com musculatura exagerada e armados até os dentes, os heróis do fim do milênio não eram tão diferentes dos vilões que enfrentavam. O bom-mocismo estava, definitivamente fora de moda. As duas maiores editoras, Marvel e DC Comics, incorporaram essa tendência em suas páginas também. Vimos então histórias mais violentas, roteiros menos elaborados e arte exagerada – com direito a mulheres sendo representadas pura e simplesmente como objetos sexuais. Um herói que não matasse seu inimigo – de preferência, da pior forma possível – não merecia ser chamado de herói. Da mesma forma, um desenhista que entendesse minimamente de anatomia não teria seu lugar ao sol no mercado de hqs.
Até que chegou Alex Ross.
Retorno à Era de Prata
Em 1993, Ross tinha ilustrado a belíssima minissérie Marvels. Com um estilo bastante realista e um retorno às origens da Casa das Ideias, Marvels lançou o jovem pintor no mercado de forma magistral. Pouco tempo depois, Alex Ross teria ido à Distinta Concorrência apresentar um novo projeto. Ele que cresceu com os personagens da editora, lendo seus gibis e assistindo seus desenhos animados, queria ilustrar uma história que retratasse sua paixão pela Era de Prata dos quadrinhos, um tempo no qual heróis eram heróis “de verdade”. Para não cair no risco de deixar uma obra de tamanha magnitude ser roteirizada pelo próprio desenhista (algo bastante em voga na época), o editor Dan Raspler convidou Mark Waid para a empreitada. Waid era famoso por seu conhecimento enciclopédico do Universo DC, e era talentoso o bastante para encarar tamanho desafio. Assim, com os esboços e anotações originais de Ross em mãos, e após várias reuniões de criação, Mark Waid criou uma história fantástica que ao mesmo tempo que criticava o cenário da época, reverenciava os maiores personagens de todos os tempos. Alex Ross teve bastante liberdade na criação, e sua ideia original (a história deveria se chamar A Era Heroica) teve bastante coisa aproveitada.
Assim, em 1996, Reino do Amanhã é publicado, na forma de uma minissérie em quatro partes. O sucesso foi estrondoso. Uma grande campanha de marketing antecipou o lançamento, com pôsteres e cards colecionáveis. Desde então, a história tem sido republicada frequentemente, com edições de luxo, materiais extra, esboços… E a trama, embora um registro histórico da época em que foi escrita, continua relevante nos dias de hoje.
Verdade, Justiça e Quadrinhos Americanos
O primeiro capítulo apresenta como está o mundo após a aposentadoria dos maiores heróis do UDC. Através do ponto de vista de um ser humano comum, o Reverendo Norman McCay, Waid e Ross nos apresentam esse futuro pessimista e muito parecido com o que estava acontecendo nas outras editoras. Os meta-humanos se consideravam superiores ao resto do planeta, e suas brigas mesquinhas e egocêntricas ofereciam mais riscos do que segurança à população. Os vilões não são mais um grande problema, e sim os próprios autoproclamados heróis. Wesley Dodds, o Sandman original, está num leito de hospital, em seus últimos momentos da vida. Norman McCay presencia sua morte e acaba herdando as visões do Armagedom que Sandman tinha em vida. Ao fim de um culto, Norman recebe a inesperada visita do Espectro, o Fantasma da Vingança, que anuncia ao pastor sua missão no fim do mundo. McCay e Espectro iniciam uma jornada no plano etéreo na qual presenciam os grandes fatos que levará ao Apocalipse de suas visões.
Assim, vemos um Superman isolado em sua Fortaleza da Solidão em um holograma que simula fielmente a Fazenda Kent. Clark está mais velho, de barba e cabelos grisalhos, e seu semblante demonstra o peso do mundo que carrega em seus ombros. Ele demonstra não saber do incidente que ocorreu há pouco tempo no Kansas, uma explosão nuclear causada pela morte do Capitão Átomo pelas mãos de Magog. Diana, a Mulher-Maravilha chega para avisá-lo de que o mundo precisa dele novamente, aparentemente sem sucesso. Espectro então leva Norman para conhecer o que restou da antiga Liga da Justiça. Descobrimos que o Flash se fundiu à Força de Aceleração, e agora praticamente pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, inclusive em outras dimensões da realidade. Gavião Negro se tornou uma entidade da natureza, Lanterna Verde orbita solitariamente a Terra em uma base espacial que ele mesmo construiu com seu anel. E Gotham City é governada por uma legião de drones controlada pelo Batman, que adota uma estratégia de tolerância zero ao crime. O fim do primeiro capítulo mostra o Superman finalmente retornando à ativa e trazendo consigo novamente a esperança de tempos melhores.
No segundo capítulo, vemos o ressurgimento da Liga da Justiça da América. O retorno do Superman inspirou outro heróis de sua época a juntarem-se às suas fileiras. Flash, Lanterna Verde, Poderosa, Ray, Mulher-Maravilha, Gavião Negro e Robin Vermelho são os primeiros. Com o tempo, a inspiração faz com que mais heróis saiam da sombra. Menos, claro, o Batman, que continua recluso em sua caverna, controlando os drones e monitorando, como um Grande Irmão, sua cidade. Seu estado físico encontra-se debilitado, mas suas habilidades mentais estão melhores do que nunca. Bruce Wayne se recusa a voltar para a Liga da Justiça, por não concordar com os métodos que o Superman adota. Após o diálogo entre os dois gigantes, descobrimos que o Homem-Morcego tem sua própria rede de vigilantes, em sua maioria jovens e filhos dos heróis do passado. Isso reforça a tradição do Cavaleiro das Trevas de influenciar e arrebanhar jovens pro seu exército particular. Dick Grayson, o primeiro Robin, não está ao seu lado. Como Robin Vermelho e conhecendo seu antigo mentor, ele prefere juntar-se ao kryptoniano, mas sua filha não pensa da mesma forma e engrossa as fileiras do Batman (uma subtrama que, infelizmente, se perdeu e só ficamos sabendo devido ao material extra). Ao lado do Batman, temos também grandes figurões como o Arqueiro Verde, Besouro Azul, Canário Negro entre outros.
Superman continua seu recrutamento e vai atrás dos novos heróis, impondo sua vontade através da força. Os que recusam são presos em um Gulag projetado pelo Senhor Milagre, impossível de escapar (uma clara referência ao sistema de encarceramento e trabalhos forçados da extinta União Soviética). Alex Ross concebeu a arquitetura da prisão com o design clássico do QG da Legião do Mal, do desenho Superamigos. A ideia do Superman é que o Gulag seja uma espécie de colônia de reabilitação, e hologramas são projetados para educar os internos a usarem seus poderes com responsabilidade. Infelizmente, as coisas não são tão simples como ele gostaria.
Nesse capítulo ficamos também sabendo o motivo pelo qual Superman se aposentou. Com a chegada de novos heróis, a opinião pública passou a não confiar mais nos métodos considerados antiquados do protetor de Metrópolis. Após um ataque do Coringa que resultou na morte de Lois Lane, Magog – um dos novos heróis – assassina o Palhaço do Crime e é preso pelo Superman, que o leva a julgamento. Seguindo a ideia de que “bandido bom é bandido morto”, o júri absolve Magog que desafia Superman para uma luta. Ao ver que isso não levaria a nada, o Azulão abandona sua cidade, seus protegidos e sua “batalha sem fim”, entregando esse novo mundo aos heróis do novo tempo. Seu isolamento então mostra-se uma forma de abandonar tudo, menos seus ideais, pois ele ainda está convencido de que está certo. Ao voltar, enfrenta Magog e o prende para a reabilitação.
Além dos dois grupos de heróis, vemos ainda nesse capítulo os humanos mais ricos do mundo, liderados por Lex Luthor, formando uma Frente de Libertação da Humanidade. Os maiores vilões do passado se mostram preocupados com o destino dos humanos comuns frente a tanto poder concentrado nas mãos de tão poucos. Esta cena reflete em muito a noção de que magnatas e grandes corporações são quem realmente governam o mundo. Luthor e seus aliados podem até usar a desculpa de que estão protegendo a humanidade, mas na verdade estão apenas protegendo seus próprios interesses e garantindo os privilégios da elite capitalista. Qualquer semelhança com qualquer magnata da vida real (principalmente alguém que porventura almeja o cargo de presidente dos Estados Unidos) não me parece mera coincidência. Novamente, os quadrinhos americanos refletem a sociedade na qual são produzidos.
Ponto de ebulição
No terceiro capítulo, tudo dá errado. O Gulag não funciona como reabilitação, e cada vez mais os prisioneiros se rebelam. A população, que havia voltado a acreditar no Superman, passa a olhá-lo novamente com desconfiança. A Mulher-Maravilha então começa a pressionar Superman para que ele tome atitudes mais severas. Como uma guerreira, ela acredita que força letal deve ser usada contra os mais resistentes. Superman não concorda por achar isso uma atitude fascista, e a Princesa Amazona insiste que ele deva assumir de uma vez seu papel como líder mundial. Vemos um Superman dividido entre a vontade de tomar as rédeas do poder e a ideia de justiça e democracia que ele sempre defendeu e acreditou. Enquanto isso, Bruce Wayne une-se a Lex Luthor para garantir o protagonismo à humanidade. Luthor tem em suas mãos uma arma secreta: o jovem adulto Billy Batson, que sofreu lavagem cerebral desde criança e pode tornar-se o Capitão Marvel e agir à favor do magnata.
O capítulo fica cada vez mais tenso quando vemos o rompimento da Mulher-Maravilha com o Superman. Decidida a derrubar a prisão sobre as cabeças dos presos rebeldes caso necessário, Diana segue para o Gulag com os heróis que a apoiam. Enquanto isso, Bruce Wayne revela que nunca esteve realmente do lado de Luthor, que manda o capitão Marvel derrubar a prisão. É a batalha do Homem de Aço contra o Mortal Mais Poderoso da Terra.
No quarto e último capítulo, o Armagedom chega à Terra. Durante a luta entre Superman e Capitão Marvel, a ONU resolve mandar uma bomba nuclear sobre o local, eliminando a ameça sobre-humana de uma vez por todas. Batman e seus aliados juntam-se finalmente aos seus antigos amigos para combater os prisioneiros. Enquanto isso, os jatos dos Falcões Negros chegam com a bomba, que é lançada no coração dos Estados Unidos. Superman e Capitão Marvel parecem finalmente ter chegado a uma trégua no embate, e enquanto a bomba cai, o Espectro finalmente dá a Norman McCay a ordem para cumprir seu papel no fim do mundo: julgar. Cabe ao velho pastor decidir quem deve pagar pelos pecados do mundo, os super-humanos ou a humanidade.
A explosão da bomba – e a morte e sacrifício de vários heróis – faz com que Superman perca o juízo e decida acabar de uma vez por todas com os responsáveis. Com fúria nos olhos, voa para o prédio das Nações Unidas decidido a derrubá-lo. Nesse momento, Norman McCay pede ao Espectro para que ele possa interferir. Como um bom pastor, o reverendo MacCay aconselha o ensandecido kryptoniano e firmemente o trás à razão. Superman então percebe que a paz não pode ser imposta pela força, e que um novo mundo mais justo só é possível com a união entre humanos e super-homens.
A história então termina com a redenção dos meta-humanos e sua reinserção na sociedade, de uma forma bastante inspiradora e positiva após tantas tragédias. Superman volta a acreditar na humanidade e isso fica representado em seu retorno à identidade de Clark Kent, ao colocar os óculos na última página.
O Reino Hoje
Anos após a publicação original, duas novas cenas foram acrescentadas à trama, em edições encadernadas de luxo. A primeira é o encontro do Super com Órion, em Apokolips, que tomou o lugar de seu pai Darkseid como ditador do planeta, e a conversa com Senhor Milagre, que projetaria a prisão. A segunda é o epílogo, onde vemos que Clark e Diana não só estão juntos como anunciam para Bruce Wayne que ele será o padrinho do bebê que está no ventre da Mulher-Maravilha. Uma cena bastante emocionante, diga-se de passagem.
O tempo também nos mostrou o quão acertada foi a decisão de Dan Raspler em convocar Mark Waid para o roteiro. Embora a ideia de Alex Ross fosse excelente, é muito provável que o resultado não seria o mesmo caso o próprio ilustrador assumisse o roteiro. Prova disso é a maxi-série Justiça, escrita por Jim Krueger e ilustrada por Ross, que foi muito maior (12 capítulos!) e não teve o mesmo êxito que o Reino. Vinte anos depois de sua publicação original, Reino do Amanhã ainda tem muito o que dizer. A Edição Definitiva apresenta, além dos esboços de Alex Ross para cada personagem, um guia para cada easter egg presente na hq, além de toneladas de textos explicativos, pôsteres e a sensação de que cada material extra é realmente relevante. Reino do Amanhã não é apenas uma história da Liga da Justiça. É uma epopeia atual, que mostra os super-heróis como deuses vivos da mitologia moderna andando entre nós. Se o Superman é o protagonista da história, Norman McCay é o “pé-no-chão” que nos conecta a ela. Norman representa cada leitor ou leitora que já se admirou com essas lendas e, por um motivo ou outro, virou as costas pra ela. A narrativa bíblica, presente em versículos do Apocalipse de São João nas visões do reverendo, dá o tom grandioso da história. O conflito ideológico entre Batman e Superman, além das inserções da Mulher-Maravilha, nunca estiveram tão presentes no mundo moderno quanto hoje em dia. Ao mesmo tempo, a escalação dos personagens remonta claramente à época em que foi escrita. O Lanterna Verde por exemplo, é Alan Scott porque Hal Jordan tinha morrido nas publicações da época e a Tropa dos Lanternas Verdes não existia mais.
A história serviu ainda de base para muitas publicações futuras da DC, mas nenhuma delas se equipara à grandiosidade e maestria dessa saga sobre deuses e mortais, sobre o Bem e o Mal, sobre homens e super-homens.