Crítica | Capitã Marvel
Cercado de muitas expectativas, Capitã Marvel finalmente chega aos cinemas, dirigido pela dupla Anna Boden e Ryan Fleck, mais de dez anos depois do marco inicial do universo compartilhado da Marvel, com o Homem de Ferro de John Favreau, e o resultado é um filme divertido e despretensioso, mas que tem um desenvolvimento inicial um pouco desnecessário.
Carol Danvers (Brie Larson) nos quadrinhos sempre foi uma personagem controversa, teve fases entre os codinomes de Miss Marvel, Binária e Warbird em que tratou de temas pesados como alcoolismo e abuso sexual, e de certa forma, o ponto de início da personagem no filme conversa com isso, estabelecendo no roteiro que a heroína teve um passado que não se recorda, e por algum motivo, não há esforço ou curiosidade para se explorar esse ponto. É como se ela estivesse se distanciando dessa época, simplesmente pelo fato de ali habitar traumas tão grandes que fazem a moça esquecer quem era.
A composição visual desta parte soa estranha e artificial, bastante genérica, curiosamente há um efeito oposto ao visto em Homem de Aço, com Krypton sendo a melhor configuração visual do filme de Zack Snyder para logo depois cair sobre um texto sofrível. Em Capitã Marvel ocorre o exato oposto disso. Neste ponto há uma boa relação do personagem de Jude Law com a protagonista, variando entre a figura do mentor, preocupado com sua talentosa aprendiz, e o sujeito castrador, que impede sua aluna de voar, apelando sempre para o clichê da humanidade, de que ela é muito emocional, afirmando que isso atrapalha sua função de protetora da cultura Kree. A grande questão é o que ocorre depois, onde as curvas dramáticas de certa forma invertem um pouco o sentido desse relacionamento, e caem sobre clichês batidos. Essa pecha de desqualificar a pessoa por conta das suas emoções é um clichê muito utilizado para desqualificar as mulheres e a maior riqueza do roteiro é a desconstrução desta questão, resultando inclusive nesse ser o diferencial da personagem enquanto guardiã da justiça.
O retorno à Terra é sem dúvida nenhuma um dos melhores momentos do longa. Tudo que envolve a chegada da heroína ao planeta é carregada de paranoia extrema, que começa pelo conflito entre Krees e Skrulls. Essa dicotomia traz ecos da Guerra Fria, e é acertada demais à época em que o filme de passa, nos anos noventa, com a humanidade que já viveu a Guerra Fria e que se permite não ser mais tão maniqueísta e preocupada quanto os dois povos em conflito. De inteligente também existe o comentário sobre o quão vazias podem ser as razões para a guerra, além da desconstrução da demonização de ambos os lados, pois durante as mais de duas horas de filme os dois povos alienígenas são mostrados como cruéis e honrados quase na mesma medida.
O Nick Fury de Samuel L. Jackson se torna um coprotagonista, a quantidade de tempo e de importância que tem no filme talvez seja maior do que toda a soma de suas participações nos outros capítulos do MCU. A reconstrução visual de sua juventude é muito bem feita, a maquiagem o deixa mais jovem e ele claramente está em boa forma. Não faz lembrar o seu personagem Zeus em Duro de Matar: A Vingança, mas ainda assim ele aparenta ter entre 30 e 40 anos. Boa parte das piadas e momentos engraçados do longa passam por ele, e a relação entre ele e a personagem-título flui muito bem entre o receio mútuo dos dois e a parceria franca e crédula. A dinâmica de filmes policiais com parceiros diferentes funciona bem demais, fazendo o fracasso de Homem de Ferro 3 soar ainda maior por ter tentado isto com os filmes da Marvel e simplesmente não ter conseguido.
As piadas com a tecnologia descartável da década de 90 são muito boas, e apesar de não ter um vilão muito inspirado tal qual a maioria absoluta dos filmes da Marvel, as relações de Capitã Marvel são muito críveis, seja as de Larson com Annette Benning, que faz uma mentora que se baseia em um personagem clássico dos quadrinhos, mas com diferenças importantes, ou com Talos, o personagem de Ben Mendelsohn, que faz um sujeito desconfiado, sorrateiro mas que é capaz de travar uma amizade que varia entre a rivalidade e a cooperação amistosa com Fury — aliás poucas vezes se viu uma versão tão acertada e diferenciada dos Skrulls quanto aqui.
Há uma outra relação interessante, embora não tenha muito tempo de tela, entre Danvers e sua amiga e antiga copilota Maria Rambeau, interpretada por Lashana Lynch, que além de carregar o sobrenome da personagem Monica Rambeau (a primeira Capitã Marvel), ainda dá ares de antigo par romântico de Danvers, ainda que isso não seja dito com todas as letras, de qualquer forma é louvável que tenha se levantado essa possibilidade, ainda mais se tratando de um filme feito para o público nerd, que tem sido um reduto de conservadores nos últimos anos.
Apesar de alguns problemas com a história muito formulaica, a obra de Boden e Fleck tem mais acertos do que equívocos, sobretudo no que não é dito e no que é implícito. Se Larson não é tão brilhante, ao menos seus coadjuvantes são, em especial Jackson e Mendelsohn, que pavimentam bem o caminho para que a personagem heroica consiga atingir seu apogeu, a despeito até do fraco desempenho de Law no ingrato papel que lhe cabe. Ao menos nesse filme não existe a mesma problemática de tantos outros filmes de origem, embora seja um pouco necessário ter assistido Capitão América: O Primeiro Vingador e Guardiões das Galáxias para relembrar alguns personagens e situações. As cenas pós-créditos pouco acrescentam e ao menos neste filme não se justifica o fato de Fury não ter chamado através do pager uma mulher tão forte e poderosa em Vingadores, Vingadores: Era de Ultron ou em Capitão America: O Soldado Invernal, e as possibilidades para o futuro da Marvel nos cinemas seguem como antes do lançamento do filme, intactas, abrindo a possibilidade para talvez terem histórias mais fechadas em si, como esta, onde o escapismo e a falta de pretensão cronológica possam reinar de modo livre e sem pudor de ser somente isso.