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  • Review | Cidade dos Homens

    Review | Cidade dos Homens

    Cidade dos Homens mirava ser uma versão mais palatável e juvenil de Cidade de Deus o clássico longa de Katia Lund e Fernando Meirelles. Ambos são creditados como criadores e produtores do seriado que teve quatro temporadas de 2002 e 2005 e um filme de mesmo nome lançado em 2007. No elenco, haviam muitas coincidências com Cidade de Deus, incluindo Douglas Silva e Darlan Cunha e outros membros da produção. O seriado mostrava a vida de Acerola e Laranjinha que viviam situações perigosas, típicas da vida nas favelas cariocas, mas também compartilhavam momentos comuns a vida de qualquer criança.

    Fase Clássica

    Já nos primeiros momentos de seu piloto dirigido por César Charlone, se estabelece o protagonismo de Luiz Claudio Cunha, o Acerola e Uólace da Silva, o Laranjinha, transitando sempre entre o morro e a zona sul, parte nobre da capital fluminense. A linguagem é crua e os termos usados pelos meninos envolvem um escracho salutar, com gírias próprias e um conjunto de palavrões pouco comuns ao retratado normalmente em crianças na televisão aberta. Os garotos que contam a história não são normais, ao menos não para os padrões da classe média que costuma monopolizar a teledramaturgia global mas as situações que vivem conversam demais com a rotina da maioria das pessoas de baixa renda brasileira. O que é até natural dado que a primeira vez que os dois apareceram foi no curta Palace II, de Lund e Meirelles, exibido no também global Brava Gente.

    Na primeira temporada há um número considerável de intervenções meio documentais, quebrando a quarta parede e mostrando os meninos como atores e não como personagens, contando parte de suas experiências com a violência cotidiana. É curioso notar como eles enxergam a realidade que vivem, transitando entre o medo de morrer e o desejo de ter a ascensão social via capital, gerado pelo dinheiro do tráfico. Ao mesmo tempo em que sabem que poderiam obter o glamour do dinheiro pelo tráfico, sabem da guerra estabelecida com os policiais que, em sua maioria, são pobres como a dupla de protagonistas. Assim, o norte de ambos é o medo de morrer jovem.

    O seriado se dedica a fazer paralelos simples entre todas as realidades dissonantes apresentadas, o corpo de diretores é bem diverso, além dos já citados Lund, Meirelles, Charlone há também de Paulo Lins (autor do livro Cidade de Deus), Adriano Goldman, Cao Hamburger,  Eduardo Tripa, Paulo Morelli, Pedro Morelli, Phillippe Barcinski, Regina Casé (que seguiria levando Cunha e Silva para seus projetos) e Roberto Moreira entre outros.

    No segundo ano do programa, os meninos crescem, entram na adolescência e se desenvolvem fisicamente muito rápido, ficam altos, parecem adultos. Nessa temporada começam a dar vazão a sexualidade, fato que casa bem com a estatísticas de que menores de idade em famílias de baixa renda costumam ser sexualmente ativos mais novos do que outras faixas econômicas. As cenas de encontro e amassos garantem alguns dos momentos mais engraçados do seriado. Além desses momentos leves, também se trata da realidade dos presídios, chegando ao cúmulo de um dos personagens até pedir ao presidente, na época Lula, para perdoar um parente encarcerado.

    Os episódios tinham um formato simples e duração curta. Eram obviamente voltados para a comédia, mas todos esses casos graves dão uma dimensão do quanto o Brasil é um país diverso que contém muitas realidades. A identidade nacional está longe de ser uma só. É plural, trágica mas também bonita e poética, Laranjinha e Acerola são jovens heróis dessa realidade.

    Na terceira temporada os dois personagens avançam casas. Tem uma iniciação na vida sexual que vai além dos flertes e vão para as vias de fato, e os roteiros se dedicam para falar de gravidez na adolescência, aborto e temas relacionados. Mesmo quando a abordagem é didática, há uma boa dramaturgia por trás, soa natural, coerente com a premissa da série.

    A quarta temporada é claramente menos inspirada, mais voltada para a quebra da quarta parede, em que se fala abertamente que os dois meninos são personagens, mostrando Darlan e Douglas tendo que lidar com o desemprego como atores.

    Roberto Moreira dirige A Fila, episódio mais agressivo até então no programa, em que Laranjinha já mais velho, leva uma bala perdida e vai para o hospital. Ao final, ele é confundido com um bandido e levado por seus parceiros. Já nesse início se percebe uma visão mais adulta e uma abordagem madura, espírito que seria evoluído no controverso filme. Esse tipo de mudança narrativa é bastante válida, mostra o quando Cidade dos Homens era versátil, e que valia evidentemente ser revisitada. É uma pena que a maior parte do seu elenco não tenha se dado tão bem no cinema e televisão, com exceção de uma ou outra participação de Douglas Silva nos programas da auditório de Regina Casé, ou de outros coadjuvantes como Tatiana Rodrigues que fez muitas novelas. Ainda assim, a criação de Meirelles e Lund gerou bons frutos, especialmente por não olhar para a realidade de favelados e suburbanos cariocas como pobres coitados meramente, e sim como gente comum, que tem alegrias e dissabores semelhantes a vida de qualquer um.

    Minissérie

    Dez anos após o lançamento do filme, a historia de Laranjinha e Acerola volta a ser contada, dessa vez com eles adultos, vividos pelos mesmos atores. Ambos já tem filhos, que por acaso, também são melhores amigos. O espírito prossegue semelhante, Cunha e Silva seguem bem em seus papéis, claro, com novos desafios típicos da vida de um jovem adulto favelado.

    A mini teve (até agora) duas temporadas de 4 episódios cada. Os meninos são vividos por Luan Pessoa como Davi, e Clayton por Carlos Eduardo Jay. Os episódios são dirigidos por Pedro Morelli e utilizam demais das imagens da fase inicial, para pontuar as novas situações, com forte uso do sentimento nostálgico.

    Essa reciclagem tem bons momentos, embora na maioria deles, pareça apenas uma reciclagem, com os momentos novos servindo de pretexto para requentar os clássicos. A exceção se dá nos episódios finais de cada uma delas: a primeira refletindo sobre as dificuldades dos mais pobres em ter serviço de saúde como operações no SUS (fato que se agravaria ainda mais nos anos posteriores a 2017), além de um surpreendente plot sobre quem seria a mãe de Davi, e porque o filho de Laranjinha teria a mesma idade de Clayton mesmo sem ter sido apresentado antes.

    Ao menos os roteiros são carregados de emoção, de momentos que colocam seus personagens no limite. Além disso, há uma crítica mais ácida a condição política e social do Brasil. O Rio de Janeiro é mostrado ainda como um cenário de guerra, os meninos que antes tinham medo de morrer agora pensam em como suas famílias poderão sobreviver. Não bastando isso, eles ainda têm problemas com desemprego, questões que grande parte dos brasileiros vive na pele, moradores ou não de comunidades carentes. Cidade dos Homens mesmo em meio aos seus clichês segue atual.

     

  • Crítica | Dois Papas

    Crítica | Dois Papas

    Podemos dizer que a quase década que perdurou do ano de 2005 até 2013 foi bastante agitada para a Igreja Católica. Com o falecimento de Karol Wojtyla, mais conhecido como João Paulo II, um dos maiores papas da história, deu-se início ao conclave, que consistia na busca por um novo papa. O conclave é como se fosse uma eleição, porém, ultrassecreta, onde os cardeais se reúnem para eleger um novo líder de Roma, do Vaticano e consequentemente, da Igreja Católica. João Paulo II foi um papa extremamente carismático, sendo que morte e a consequente escolha de um novo pontífice foram recebidas pelo mundo com muita tristeza e ansiedade. Foi então que após quatro fumaças pretas, os cardeais escolheram o alemão Joseph Ratzinger como novo papa, que adotou o nome de Bento XVI. O papado de Bento XVI foi muito difícil. Logo no início, as acusações de que ele havia sido um soldado durante o regime de Adolf Hitler começaram a pipocar pelo globo. Mas, obviamente, a mensagem compartilhada por milhares de pessoas eram recheadas de maldade e principalmente falta de um mínimo de conhecimento, além disso, o Vaticano foi exposto a uma série de sérios escândalos que envolviam corrupção e pedofilia, o chamado Vatileaks, onde o secretário do próprio papa vazou as informações. É quase certo que os escândalos foram responsáveis pela renúncia de Bento XVI em 2013, um fato inédito na Igreja. Assim, um novo conclave foi realizado e o argentino Jorge Bergoglio que passou a adotar o nome de Francisco, foi eleito o novo papa.

    Dois Papas busca retratar exatamente esse período tão turbulento tratado como um claro pano de fundo, focando, mais precisamente, na relação entre Bento XVI e Francisco (ainda como cardeal Jorge Bergoglio), dois seres extremamente cultos, estudiosos e conhecedores de suas doutrinas, mas com uma única diferença: cada um tinha sua própria maneira de interpretar a Bíblia e os ensinamentos de Jesus Cristo. O que começou com embates intelectuais entre os dois seres, terminou com uma bonita relação de amizade, o que não é escondido de ninguém.

    Dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, que tem no currículo filmes como Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira, e escrito por Anthony McCarten, que emendou a trinca A Teoria de Tudo, O Destino de Uma Nação e Bohemian Rhapsody, a produção da Netflix é bastante leve, focada principalmente nos diálogos e na humanidade dos dois personagens, ainda que Bento XVI (Anthony Hopkins) seja um pouco mais seco e Bergoglio (Jonathan Pryce) mais bem humorado, piadista e até sarcástico. Apesar de o filme retratar a relação dos dois, fica mais que evidente, que, na verdade, o foco é no argentino, já que podemos observar por meios de flashbacks toda sua trajetória, desde o curioso (e bastante bacana) momento decisivo que fez com que ele decidisse optar por entrar já adulto no seminário, bem como um momento onde muitos enxergam como uma mancha em sua história, durante o período da ditadura militar argentina. Acredita-se que Bergoglio se aliou ao ditador Jorge Rafael Videla, e muitos o culpam pelo sequestro, tortura e morte de algumas pessoas. Obviamente, esse trecho da fita retrata o ponto de vista do futuro pontífice sobre o fato. Falando em fatos, o filme é baseado em fatos reais. Portanto, nem tudo que vimos em tela pode ter realmente acontecido. Obviamente, a simplicidade do cardeal é algo muito bem retratado, já que ele compra suas passagens com o próprio dinheiro, não aceita que carreguem sua bagagem, além de usar uma pasta e um par de sapatos velhos.

    A direção de Meirelles é característica. Com seu braço direito, o diretor de fotografia César Charlone, a dupla usa e abusa de técnicas que hoje são suas marcas registradas: muita câmera na mão e o chamado ângulo holandês, onde a câmera é levemente inclinada deixando a imagem “torta”. Mas o destaque fica por conta da interpretação da dupla de protagonistas. Anthony Hopkins é um estudante metódico do texto. Segundo Meirelles, o ator pediu que o roteiro fosse entregue cerca de cinco meses antes do início das filmagens e pediu que o texto não fosse alterado, o que é muito difícil. Já Jonathan Pryce, buscou observar mais o jeito de Bergoglio, estudando seu jeito de falar, seus movimentos, como gestos, postura, modo de andar e o resultado disso tudo é uma aula de interpretação dos dois atores que são mundialmente respeitados.

    Como dito, Dois Papas é um filme bem leve e bastante equilibrado no quesito drama/humor e traz uma trilha sonora bastante ousada, porém, diferente do que se espera de um filme dessa natureza. Obrigatório para os católicos, o filme também agradará os amantes de bastidores, já que procura mostrar aquilo que, de certa forma, não chega sempre ao conhecimento do grande público. Ainda que seja uma obra de ficção baseada em fatos reais, é algo que vale a pena.

    Texto de autoria de David Matheus Nunes.

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