Crítica | Poesia Sem Fim
Melhor título, impossível. Estamos a falar, ou melhor, na tentativa de imprimir as impressões infinitas desse evento em meras palavras enfraquecidas por quaisquer reflexões mais aprofundadas que, feito ondas, vêm nos assolar após sua exibição, a discursar sobre poética filmada, mas de forma absolutamente única, hoje em dia, ainda mais. Fato é que, após três minutos de Poesia Sem Fim, você já está inserido(a) na construcción del mundo de Alejandro Jodorowsky, e de lá você não sai mais, nunca! Sua poesia mais que impagável fará falta. Toda a exuberância do último grande discípulo incorrigível do surrealismo cinematográfico universal.
O chileno Jodorowsky, cineasta da invenção e da fantasia solta e arredia, promove uma reurbanização em sua memória afetiva, traduzindo-a de corpo e alma em forma de filme. Que filme que é, ninguém sabe, apenas o próprio. Vomitando referência de seu próprio mundo adolescente, do seio familiar às ruas conturbadas e latino-americanas onde cresceu e desenvolveu seu ego, âmago e espírito tão onipresentes em sua obra artística, Poesia Sem Fim arde em essência nos contornos excêntricos e autorais de uma realidade encenada com o típico esmero que faria as almas, do naipe das de Pablo Neruda e Luís Buñuel sorrirem, sem parar, por duas horas ininterruptas de um universo guiado por júbilo e primores rumo a chamada salvação.
Com a devida vênia para consigo mesmo, Jodorowsky sempre construiu odes de amor ao Cinema, como se o mesmo servisse-lhe como bengala, como terapia para expurgar seus sonhos e pesadelos mais íntimos – não agindo assim, contudo, para tornar sua perspectiva lúdica e sincera uma mera desculpa expressiva pra filmar qualquer coisa, a adrenalina e a fúria deliciosa donde se expande seu mundo, e que um exemplo seja dado, a tanto: Ao retratar seu pai, extremamente machista e bruto e seu contato com o filho, o possível exagero na figura opressiva é substituído pelo exagero das próprias situações que o patriarca participa, como um terremoto inesperado ou um jogo de cartas dos mais imprevisíveis e satisfatórios a habitar o menu do Cinema neste século – posto que, ao beijar outro garoto sendo essa sua primeira carícia com outra pessoa, nota que não sentiu nada, sentindo-se nisso mais maduro por ter a certeza de não ser homossexual, tal o pai acusava-lhe. Como é fácil se perder em Poesia Sem Fim; impossível nos é, entretanto, deixar de amá-lo. Mas que fique registrado, nesse fim de parágrafo, a única mentira que cometi entre todos os verbetes talvez ou certamente verborrágicos, logo acima.
Jodorowsky entrega uma homenagem não só ao Cinema, mas a todas as artes no que consiste a substancialidade de seus simbolismos, indo além da máxima da lua ser feita de queijo, ou outras bobagens repassadas entre gerações. Sua paixão artística não se casa com o clichê! Sua emancipação se dá na cor, no mover! Sua alegoria é do mundo, retrata-o, no ontem e nas possibilidades dele, e a ele pertence, indo muito além do idioma, cenário e peculiaridades culturais do Chile, da América Latina, dos signos do ocidente, etc.! Por isso, uma câmera se esforça para absorver sob a luz sua incomensurável identidade frondosa, visualmente recitando através da dança, pintura, música e relações intra e interpessoais o impulso das engrenagens de uma vida que o moldou. Seja enquanto homem, enquanto artista, enquanto apóstolo das excelências experimentadas por Federico Fellini e cia., recitadas também em outros testamentos, vide A Dança da Realidade, Santa Sangre, e o mais famoso de seus rebentos, A Montanha Sagrada, uma de suas magnum opus que serão lembradas pela sociedade que só reconhece e premia seus gênios desmerecidos após o óbito roto e irônico de cada um deles, como bem se sabe.
Infelizmente, as consciências e a magia exclusiva de Jodorowsky não se faz para todos os faros, distante das amplas palmas ou mesmo da curta ponte onde Quentin Tarantino e outras inteligências do ramo usufruem do equilíbrio entre o caráter autoral, e as responsabilidades publicitárias. Melhor, impossível. “Os poetas não dão explicações”, diz uma personagem, em certa hora, inserida como nós neste turbilhão de caricaturas e emoções reais, travestidas em saudosismo existencial, e invencionista! O autor chileno se fez livre, de fato, feito um pierrô romântico de cabelos já grisalhos, elegendo, desde o momento que abandonaste a família para ir encontrar suas verdadeiras raízes, mundo afora, os festivais para encher os olhos do público de significado próprio! E porquê? A arte é a musa suprema de Jodorowsky, sempre foi, e no tratamento que a oferece no rebente de quadro a quadro, de filme a filme, faz-nos apaixonar por ela como se não houvesse outra musa mais merecedora de nossos préstimos acalorados.
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