Resenha | Fun Home: Uma Tragicomédia em Família
Maus, de Art Spiegelman, é um quadrinho que, lida por um desavisado e acostumado apenas a histórias em quadrinhos com tons mais juvenis, causa um choque irreversível com a realidade, o peso e a intensidade do trabalho do autor. Narrando os horrores do holocausto através da sobrevivência traumática de seu pai, o autor sueco utiliza de forma absurdamente épica uma mídia até os anos 1980 focada em histórias infantis, e muito menos densas que o clássico que alterou para sempre o nível de maturidade dos gibis – por mais que Watchmen, da mesma época, seja muito mais pop e reconhecido, hoje em dia. Corta pra 25 anos depois, e surge Fun Home, outro livro ilustrado, desta vez sobre os enigmas da “mais comum das famílias de classe-média americana”, repleto de ecos criativos que vão desde o mestre William Faulkner (Som e Fúria) a lenda Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido), e o chocante é o seguinte: a experiência de imersão nessa história não passa longe daquela alcançada, muito tempo atrás. Um triunfo.
Vejamos. Se no célebre e chocante Maus, tudo se baseia na história de vida perturbadora de uma figura paterna que sobreviveu ao inferno na Terra, no auge da segunda guerra mundial, em Fun Home conhecemos os anjos e os demônios de um homem acima de qualquer suspeita, Bruce, cujos hábitos e segredos moldariam não apenas sua família, mas essa obra em questão que se caracteriza, facilmente, como uma das melhores em sua mídia nesses últimos vinte anos, no competitivo mercado editorial de graphic novels. Sob uma ótica que descortina os mistérios, as raízes e os fortes valores da figura central de sua infância, a autora Alison Bechdel traça com carinho e uma certa melancolia encantadora um panorama de como é difícil, atemporal e universal certos dramas familiares, e como eles afetam e fazem morada em nosso DNA aos longo dos anos; gerações, até. Somos fruto de toda uma penca de dramas envolvendo mãe, pai, irmãos, primos, e Fun Home tem aquele efeito de se abrir um álbum de fotos, e garimpar os momentos e as pessoas que nos fazem ser quem somos.
Para alguns isso é dolorido, para outros as memórias são lenitivas, talvez até catárticas. Seja como for, o título do livro já remete a “Funeral House”, literalmente uma casa funerária para onde toda a família Bechdel foi morar, a fim de assumirem o negócio fúnebre da família – onde tudo acontece, tudo muda, e aquilo que começou e parecia infinito, termina. A narrativa é tão ágil e inteligente que, após duas páginas, já nos sentimos íntimos entre os filhos do distante pai Bruce e da cansada mãe Helen, e o leitor se pega testemunha de personagens mais reais, muitas vezes, que diversos arquétipos que nos acostumamos a enxergar, em livros e filmes por ai. Em Fun Home, uma verdadeira aula de como desenvolver o impacto do drama e do suspense em um quadrinho contemporâneo, todos são reféns de um destino que se mostrou implacável, como sempre demonstra-se a todos, afinal, em meio a pequenos grandes escândalos que faziam parte desse seio familiar. Seio este que aqui não é apenas imortalizado, mas exposto com orgulho, com todas as suas falhas, tabus e coisas não-ditas.
Nenhuma família é perfeita, não pode ser, e se de pequenos apenas sentimos isso, passamos a enxergar os porquês e a julgá-los com um certo masoquismo, acima do bem e do mal, depois de adultos. A jovem Alison cresceu assim: observando sem entender sua mãe que tentava escapar da realidade sufocante dedicando-se as artes, e um homem fechado que chamava de Pai, sem nenhuma demonstração de afeto, sempre preso em si mesmo, em seus livros e autores favoritos, suas manias de arquiteto e paisagista, seus segredos sexuais que achou que nunca seriam descobertos, suas máscaras que os anos não fizeram cair – pelo menos, não por completo. Bruce era um homem banal que, apesar das muralhas que construiu ao redor de si, teve em seus filhos o seu legado, o seu testamento precioso que agora, em 2006, virou o premiado Fun Home. O retrato da banalidade de uma gente pobre nos Estados Unidos é aqui reforçado sem a necessidade de cores, pois tudo é tão expressivo, vibrante e real que salta aos olhos de uma forma mais viva que qualquer efeito cromático pudesse superar, em nossa percepção. Alison Bechdel ilustrou o álbum de fotos da sua vida em uma graphic novel, e o resultado não poderia ser mais memorável. Um triunfo.
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