Crítica | O Bandido Giuliano
Mais de dez anos após Luis Buñuel tecer a marginalidade, os escândalos e a podridão social nas ruas do México, no meio do século, no clássico visceral Os Esquecidos, foi a vez de Francesco Rosi, cineasta muito querido pelo mestre moderno Martin Scorsese, de apresentar do mesmo modo cru e objetivo as motivações, os exageros e as consequências dos vários tipos de brutalidade humana, e a degradação do seu habitat relativo no estupendo O Bandido Giuliano, exemplar italiano “esquecido” ao longo da história da arte. Inserido em um forte cenário histórico, é possível desde o início da projeção atestar sua influência em um sem-número de produções mais famosas por também reproduzirem o júbilo de Giuliano, tais quais os ultra realistas O Poderoso Chefão II, Tragam-me a Cabeça de Alfonso Garcia, e Caminhos Perigosos – grandes obras que ainda estavam por vir, nos anos 70.
O maestro Rosi, aqui em seu melhor e mais poderoso filme, se portou como um verdadeiro arqueólogo, vasculhando constantes que não sobreviveriam fora do conturbado contexto político implícito; personagens destemidas quanto a suas condições, derivativas dos ambientes que alimentam com seus atos desumanos de sobrevivência, e barbárie. Sem pudores é apresentado esse mundo europeu nada glamoroso, e nem um pouco paralelo para quem anda pelas calçadas do século XXI sem fones de ouvido: Um universo onde interesses se chocam em ciclos de vida e morte, condenações e danação. Um faroeste urbano, onde saem os cavalos e comparece a roda do capitalismo selvagem e arrebatador que John Wayne sonhava, ainda inocente, em combater com revólver e chicote. O mundo estava mudando, e aqui, já havia mudado com grande força, e impiedade.
O Bandido Giuliano é cinema clássico apoiado na bengala da mais pura representação histórica, sem recriar a Sicília que centenas de outros filmes já haviam mostrado, remodelando a realidade. O alvo da “arqueologia” aqui era o elemento excluído ao invés do previsível, o que combinou perfeitamente com a história, na época da libertação política e conturbada da Sicília, na Itália, quando a trama se desenrola mediante o óbito do criminoso homônimo Giuliano. Seus feitos são revelados em ampla escala expansiva (Cidadão Kane, Rashomon), e seu bando aos poucos vem à luz, o que acaba por afetar a vida de dezenas de famílias e cidadãos impotentes, e humildes, que não aceitam ou entendem as consequências da violência por não beberam dessa mesma fonte. Isso dá margem a uma fantástica cena, na ocasião, onde um grupo de mulheres – mães, irmãs, esposas e afins, revoltadas pela polícia ter levado seus parentes masculinos por serem todos suspeitos de ligação a Giuliano – parte pra cima da organização armada, reivindicando a posição de sexo frágil por um bem maior.
Essa é a única demonstração revolucionária de um grupo inferiorizado, sendo nítido ao longo do filme que a revolução política que o bando criminoso na região tanto queria promover foi estendida também em outras várias cenas de grande impacto jurídico – tudo filmado com uma intensidade que Scorsese e outros mestres iriam empregar nos anos seguintes, nos outros clássicos a serem produzidos. Nas fantásticas sequências de tribunal, palco de crimes inafiançáveis, os acusados são mantidos em jaulas em um verdadeiro zoológico marcial – Rosi, seletivo e complexo, não era adepto da singeleza argumentativa ou da redenção fácil, expondo a imoralidade e invocando, assim, a nossa própria moral diante de cada caso. O cineasta sabia que “filmava” o apocalipse do homem a partir do seu próprio ambiente, e com isso, realizou um dos melhores tratados dos efeitos do socioeconômico sobre a mentalidade de um cidadão comum.
Facebook – Página e Grupo | Twitter| Instagram | Spotify.