Resenha | Desista! E Outras Histórias de Franz Kafka
A transposição de uma arte, e seus códigos fundamentais, para outra mídia distinta depende da qualidade de seu autor para compreender e adaptar um conceito a outro de maneira eficiente. A linguagem de uma narrativa escrita para uma história em quadrinhos, por exemplo, ainda que tenha parcialmente um campo comum, é erigida por conceitos diferentes.
A vertente de adaptações literárias em quadrinhos é um rico manancial que, raramente, é lido de maneira atenta. Se por um lado há ousadia de seus autores em adaptar densas obras literárias, as versões não sabem dialogar e modificar a narrativa original adequadamente aos códigos dos quadrinhos, resultando em edições que atingem somente o público que anteriormente leu as obras e procura a leitura em quadrinhos com interesse curioso.
O quadrinista Peter Kuper, famoso pelas histórias de Spy vs. Spy na revista Mad, se aventura pelas narrativas de Franz Kafka para compor uma série de histórias curtas baseadas em seus contos. A obra Desista! e Outras Histórias de Franz Kafka foi lançada originalmente em 1995 e, no mesmo ano, ganhou edição brasileira pela L&PM, reeditada pela Conrad em 2008. A edição foi a primeira incursão do autor na obra do tcheco, cuja novela A Metamorfose também foi versada pelo quadrinista.
A obra de Kafka é narrativamente bem composta e carregada de um significado metafórico, cujas interpretação e sensibilidade são transmitidas para o leitor. Suas personagens, sempre alienadas, abordam situações simbólicas que representam esteticamente o conceito de fantástico, pela quebra de uma realidade aparente. No país, entre os diversos tradutores que o versaram, temos um conjunto de traduções excelentes do qual Modesto Carone se destaca como um dos tradutores fundamentais.
Devido a esta vertente simbólica, o quadrinista tenta desenvolver um sentido visual diante desta narrativa fantástica, utilizando brevíssimos contos do autor. A escolha de textos curtos, apresentados sem cortes, potencializa a interpretação do quadrinista e a força da narrativa original; imagem e narrativa verbal buscando um equilíbrio. Por si só, Kafka é grandioso em sua obra a ponto de tornar a interpretação de Kuper inferior, devido a uma seleção de contos em que o leitor pode sorver o conto por completo – ainda que a tradução tenha perdido parte da prosódia do autor.
O único conto apresentado com cortes é O Artista da Fome: única obra inserida na seleção que contém uma longa história além das breves tramas metafóricas. Assim, o quadrinista pode adaptar com melhor qualidade e desenvolver seus traços, selecionando como irá compor sua narrativa a partir da original. É o único momento em que se torna evidente a visão do quadrinista e a voz do conto simultaneamente.
A escolha de contos breves e metafóricos, ainda que como um movimento ousado, impede uma grande reinterpretação na composição das imagens. Em parte porque o material escrito é bom o suficiente para tornar desnecessária uma interpretação visual única, afinal cada leitor desenvolverá sua própria composição imaginária a partir da metáfora. Quando o quadrinista, porém, trabalha desde a abordagem inicial do texto e sua adaptação, a versão cresce e se torna potencialmente forte como a original.
Como obra-homenagem à obra de Kafka, apresentando uma seleção de contos ilustrados, Desista! é funcional e marca um primeiro elo entre dois autores para uma futura adaptação maior. Como registro visual e, portanto, uma história em quadrinhos adaptada, o apoio em demasia aos textos originais mantém Kafka como grande destaque, fazendo dos traços de Kuper, embora competentes e bem trabalhados no uso das duas cores, um detalhe menor.