Crítica | Além da Escuridão: Star Trek
O novo Além da Escuridão – Star Trek comprova que J.J. Abrams conseguiu o que parecia impossível: unir todo o universo da franquia sem atrair a ira dos fãs – que levam muito a sério o assunto e costumam não ser tolerantes com o que consideram infidelidade. J.J. fez uma reciclagem de temas, conflitos e personagens. E obteve o que muitos filmes recentes não alcançaram: pegar um universo incrustado na cultura pop, fortemente associado a atores diferentes dos que dispõe e, de alguma forma, fazer com que todos se importem como antes, colocando o entretenimento de qualidade para caminhar lado a lado com a inteligência.
Se, no primeiro filme que assinou, o diretor introduziu personagens famosos da série, optando por contar de onde eles vieram e como se tornaram cadetes, até virarem heróis, neste, J.J. esmiúça como as relações de respeito, amizade e carinho entre eles foram pavimentadas. O diretor usa o passado para criar algo novo. Presta uma grande homenagem à série, aos filmes e aos personagens. Se já tinha adiantado isso em relação a Kirk e companhia, ele agora causa impressão com outro ícone da franquia, o vilão Khan, o mais famoso de Jornada nas Estrelas, que ganhou uma roupagem completamente diferente na ótima interpretação de Benedict Cumberbatch (o Sherlock Holmes do seriado homônimo atualmente no ar na TV). O caso é o mesmo do Coringa de Batman, que, quando feito por Jack Nicholson no filme de Tim Burton, em 1989, parecia imbatível, até que Heather Ledger se apossasse do personagem na trilogia criada por Christopher Nolan. Este, por sinal, também foi uma influencia para J.J., não só nos temas, mas também nas belas imagens capturadas em IMAX, depois que o diretor de Star Trek assistiu, a convite do próprio Nolan, a O Cavaleiro das Trevas Ressurge.
Apesar das várias referências que vão emocionar os fãs de primeira hora, Into Darkness também foi concebido para entreter o público que nunca foi ligado a esse universo. É um filme de ação feito com habilidade – um filme em que a ação está sempre a serviço da trama. É interessante que J.J., junto com o diretor de fotografia Dan Mindel, use o mínimo possível de truques de CGI nas cenas que envolvem atores e movimento – e, com isso, obtenha uma boa dose de realismo, mesmo nas sequências mais fantasiosas. Percebe-se que há uma aura de tensão constante sem que ela seja gratuita ou interfira na trama.
Um grande mérito é que o novo filme faz exatamente o que a série sempre fez: usar um cenário futurista para fazer um comentário contemporâneo sobre algum tema em voga na sociedade – no caso, o terrorismo; suas causas e consequências; a legitimidade, ou não, de se criar uma guerra com o objetivo de eliminar uma ameaça futura; a necessidade bélica do ser humano; os limites do militarismo; e os que servem à guerra ao terror. Into Darkness apresenta alguns conflitos morais complexos, como os bons roteiros de Star Trek sempre fizeram. Um dos questionamentos parte de uma intenção de se matar um homem sem um julgamento justo, sob a alegação de que ele é terrorista. O filme é, em última instância, uma alegoria transparente de uma reação desproporcional contra um ato de terror. Bem de acordo com as crenças de Gene Roddenberry, a narrativa se concentra nos valores humanos e no papel do indivíduo dentro da sociedade. E, mesmo com tudo de espinhoso que o filme retrata, a visão otimista de Roddenberry está presente. Em Star Trek, o futuro convive bem com o passado: naves sobrevoam a cidade de São Francisco, enquanto os nostálgicos bondinhos continuam lá servindo a população.
J.J. demonstra que, até a chegada desse otimismo, não foi fácil e houve uma longa caminhada. O roteiro de Roberto Orci e Alex Kurtzman recebeu um tratamento de primeira de Damon Lindelof, parceiro de longa data do diretor e também um dos responsáveis pelo fenômeno Lost na TV. Outra característica desse estilo de roteiro, que também esteve presente em Os Vingadores, sucesso no ano passado, é o aprendizado de lições de vida por parte dos personagens icônicos, como a do papel de um líder, para Kirk, e a da complexa fronteira entre a lógica e a sensibilidade, para Spock, isso tudo entre outros temas que se prestam ao escrutínio, como a amizade, a lealdade, a ética e as regras. Por trás da mensagem de “explorar novos mundos”, existe o descobrir a si mesmo.
A descoberta de Spock é um tema à parte. O ator e diretor Leonard Nimoy, apesar de muito grato à sua vida profissional e de ser um entusiasta de Jornada nas Estrelas, logo quando a série clássica foi cancelada, foi o que mais renegou seu passado a serviço de seu personagem (inclusive, com o livro Eu Não Sou Spock). Mas é ele a ponte para a chegada do novo elenco. Esta é sua oitava participação em um filme da franquia feito para o cinema. São as ironias do destino – que é altamente ilógico.
O mestre de J.J., o cineasta Steven Spielberg, também recebe seu tributo, engendrado na cena inicial – uma clara homenagem ao começo de Caçadores da Arca Perdida. Não é à toa que a célebre revista Cahiers Du Cinéma aponta J.J. Abrams como legítimo sucessor de Spielberg. E J.J. Já deu mostras de pode ir além: onde nenhum diretor jamais esteve.
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Texto de autoria de Mario Abbade.