Crítica | A Sombra do Pai
Depois do sucesso de Animal Cordial, a diretora Gabriela Amaral Almeida prossegue em sua jornada de valorizar o cinema de gênero, dando a luz ao seu segundo longa A Sombra do Pai, um filme que se vale de sutilezas para construir o próprio terror, reunindo elementos caros ao cinema de horror brasileiro, tendo como base também um terror mais psicológico como o feito na Itália por Dario Argento e pelos diretores que fugiam de fazer meras cópias do que funcionava no cinema hollywoodiano.
A trama começa com a visita de uma mulher do censo IBGE, conversando com Cristina (Luciana Paes), que é a mulher mais velha da casa, que cuida da criança recém órfã de mãe Dalva (Nina Medeiros), e que mora com seu pai. Essa configuração familiar se mostra um pouco complicada, pois Dalva é louca para casar e sair dali, e por isso faz rezas constantes a Santo Antônio, enquanto Jorge (Julio Machado), o pai da menina trabalha demais na construção civil e não parece ter qualquer vontade de conversar com quaisquer pessoas, especialmente as que moram com ele.
Enquanto isso, Dalva tenta viver sua infância normalmente, embora não consiga estabelecer isso nem minimamente. As outras crianças a evitam, de tanto sofrer rejeição por acharem que ela tem poderes misticos, ela passa a acreditar, ainda mais quando seu feijãozinho plantado não desabrocha. Ela passa a acreditar que é incapaz de gerar vida, talvez se fosse grande poderia acreditar talvez em infertilidade, e para tentar compensar isso ela passa a fazer exercícios espirituais ligados a necromancia, claro, com que ela tem acesso, fato que é encarado por alguns como afeição a macumba.
No núcleo adulto, em especial o que toca o trabalho de Jorge, há uma reflexão sobre a situação trabalhista do Brasil, onde por de cortes de custos, um dos amigos de Jorge é demitido. Até este momento, o longa dialoga demais com Arábia de Affonso Uchoa e João Dumans, e ele passa a ter rumos diferentes a partir daí, e que facilmente poderiam ocorrer com a trajetória de trabalhador acidentado vivido por Aristides de Souza no filme mineiro, com o tal companheiro de Jorge morrendo após cair de um andar alto da obra. A discussão sobre se aquilo foi um suicídio ou acidente permeiam todo o filme, mas da parte do ai de Dalva, a declaração era de quem foi um acidente de trabalho, para que a família do mesmo pudesse ter alguma indenização dos patrões.
A forma como o roteiro lida com os dons de Dalva é muito inteligente e gradual. O mistério demora e ser revelado e a aura de suspense funciona muito bem, por conta dos pequenos eventos estranhos que vão aos poucos ocorrendo. A iluminação e trabalho da direção de fotografia de Barbara Alvez ajuda a criar uma sensação de estranheza constante, mas não prenuncia nada, a natureza da influencia sobrenatural jamais fica clara e esse mistério ajuda o filme. O choro do pai sem razões explicadas, as aparições espirituais, rumores de fantasmas tudo colabora para o mistério.
Dalva em alguns pontos do filme revela ser avatar de algumas das preferências da diretora, uma vez que ela está sempre assistindo filmes de terror em preto e branco. A predileção da menina por brincadeiras que lidam com o sobrenatural também soam muito verdadeiras. A opção pelo jogo do copo situa o filme em uma brasilidade que não tem espaço para pudor. Quase todo grupo de crianças e adolescente já brincou com isso, seja para sentir medo ou só para ter alguma chance de interação sexual, visando quebrar a timidez típica das pessoas que ainda não são adultos. No entanto, a recepção de Jorge a esse tipo de atitude de sua filha é agressiva, e talvez daí venha o titulo do filme, uma vez que a menina não consegue fazer o que quer e nem manifestar seus poderes graças a limitação de seu parente.
Quase todas as tentativas de Jorge em normalizar a família fracassam. Quando ele leva Dalva no parque, eles brincam no balanço ele quase a mata de medo ao utilizar muita força ao empurra-la. O homem desesperado não sabe o que fazer ao perceber que está adoecendo e ao perceber o apodrecimento de sua própria carne, e não sabe lidar com o crescimento da criança. A mediunidade principiante que ela apresenta pode ser apenas um paralelo para uma feminilidade que cresce e se torna um comportamento feminismo, e o macho alfa do alto de sua masculinidade tóxica não pode coexistir com isso, mas essa é somente uma possibilidade de leitura para esse embate, que parece ser mais trivial do que ideológico.
Dalva parece saber o que está fazendo, ela erra em alguns pontos, mas também se instrui corretamente e dá inicio a rituais de limpeza usando tesouras para cortar os laços do mal. Aos poucos, a frustração pelo seu pé de feijão não ter crescido dá vazão uma nova manifestação estranha e frondosa, que faz a menina acreditar piamente que é capaz de realizar outros desejos seus, anseios esses ligados a falta de ter uma família estruturada de completa. O desfecho de A Sombra do Pai consegue ser onírico e trágico e o equilíbrio que a diretora estabelecer aqui é sui generis, tanto no sentido de apresentar uma historia fantástica, quanto mostrar um exemplar preocupado com causas sociais e com o momento político do país.
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