De Thiago Moyses, Z.AN. é um filme brasileiro diferenciado, para o bem e para o mal. Sua linguagem não é o português brasileiro, e sim o inglês, mirando o publico internacional e ele foi gravado por 5 dias apenas, com uma carga horário severa, com 20 horas diárias, com uma equipe de produção bem reduzida. A intenção de seu feitor era aludir a um estilo kafkiano, apesar do reduzido orçamento que dispunha.
As imagens que abrem o longa mostram roupas cintilantes, que sobressaem em meio a tela escura e aos estranhos sussurros que permeiam esse longa.A primeira inteiração dos personagens humanos dão conta de Adam Manish (João Meira), em uma sessão de terapia, e logo passa para um momento onírico, que pode ou não ser uma ilusão do protagonista. As pessoas parecem estar sob efeito de uma forte emoção ou um mal súbito, babam como pessoas raivosas, e o fato de não ter explicações ou ambientação para normalizar tais coisas, faz tudo soar estranho e bem tosco.
O filme se leva a sério demais, apesar da estética claramente trash. Há uma abertura com efeitos em 3d dos mais artificiais possíveis, fato que faz perguntar se o filme foi editado em um programa primário como Windows Movie Maker. As cores estouradas contam com retoques digitais terríveis e com imagens que invadem a tela sem qualquer textura, mas uma vez que as cenas onde isso corre são viajandonas, até se torna passável, em comparação por exemplo com os momentos “atuados”, essas sim são sofríveis, mas até do que os momentos que emulam os descanos de tela dos computadores antigos.
A sincronia com a dublagem é terrível, e não há necessidade nenhuma de se falar tudo em inglês, pois as maioria das cenas mostram que claramente a historia se passa no Rio de Janeiro. Mais do que isso, o elenco não faz nenhum dos momentos falados parecer de verdade, a dicção da maioria dos atores não combina com o anglo saxão, e ainda há o agravo da maioria dos livros em consultórios serem em português, assim como os jornais impressos mostrados.
A ideia de evocar uma hipnose lisérgica, típica de quem usou LSD é até inteligente, mas falta investimento em efeitos para fazer isso ter algum efeito que não o humorístico. Até a corrida de Adam parece a de um sujeito com restrições mentais, Meira não consegue dar qualquer presença para o seu personagem, ele é andrógino e só, nenhum personagem foge do estereotipo ou bidimensionalidade e a insistência em manter o som alto faz o incomodo do filme se maximizar.
Ao menos a criatura monstruosa do trem funciona, ela assusta por seu aspecto brilhoso, embora pareça uma gostosa ervilha na boca de um banguela, difícil de engolir e digerir. Há momentos que Z.A.N. lembra Kung Pow, por conta de seu idioma escolhido, e toda a questão envolvendo os estágios da evolução humana – da onde viria o nome do filme – pretensiosa ao extremo. O filme tem falhas grotescas de continuidade, e os cenários de CGI parecem terríveis, que pioram ao ver que boa parte dos figurinos se assemelham a fantasias de carnaval. O trabalho de Moyses parece esforçado, mas há muitas idéias mas pouco pragmatismo na hora de realizar em tela.
Filme competidor da Quinzena da Crítica do Festival de Cannes, Los Silencios é uma produção entre Brasil, França e Colômbia. Quase toda falada em espanhol, o filme começa a partir de uma tragédia já ocorrida, subentendida e que é explorada em suas conseqüências aos poucos. No começo um barco corta o rio pela noite escura, carregando ali três pessoas, aparentemente, embora se só notem duas, que são Amparo (Marleyda Soto) e seu filho Fábio (Adolfo Savinvino), a terceira é Nuria (María Paula Tabares Peña), mas só se sabe seu real destino com o desenrolar da trama.
Beatriz Seigner mostra a família tentando viver após uma tragédia pessoal, sem recursos e como refugiados. Adão (Enrique Diaz), o pai da família pereceu em uma obra e Amparo aguarda a indenização por parte da empresa que o empregava. Quando Fabio é matriculado na escola, não há garantia de que ele poderá merendar lá, e a família está numa situação tão paupérrima que eles aceitam a ida do garoto para lá, ainda que tentem sempre que ele consiga fazer ao menos uma refeição na escola.
O filme tem uma formula um pouco parada e contemplativa e o fato de ser silencioso faz com que todo suspense seja maximizado. A espera pela chegada do dinheiro que ajudaria a família a viver só não causa mais espanto do que as aparições fantasmagóricas, além evidentemente da surpresa que só se nota da metade para o final, ao mostrar outras menções aos mortos.
As manifestações sobrenaturais são mostradas de forma tão sem alarde que soam naturais, não casam estranhamento algum, até porque o terror do filme mora exatamente na falta de de esperança e alento. Enquanto Amparo parece desolada e resignada, pensando se aceita ou uma consolação no lugar da indenização, com a seguradora oferecendo a ela uma quantia pequena perto do que ganharia se achassem os corpos dos mortos, Fábio se torna um menino meio rebelde, que gosta de fumar e que tenta responder de forma agressiva ao mundo que tirou parte de sua família. Sua reação é natural, afinal o que acontece a ele e sua mãe é bastante revoltante, não só pelo acaso como pela ganância de empreiteira que se recusa a pagar o que devem a família.
Tal qual o recente Mormaço, há uma causa sobre desocupação, com uns compradores misteriosos que fazem ofertas ofensivas e de preços baixos aos aldeões, bem semelhante a que fizeram com Amparo. Os que moram no lugar onde a família foram morar tem por hábito tentar se comunicar com os mortos, a fim de garantir uma boa passagem. O modo como os não vivos são mostrados é muito bonito, com as roupas deles brilhando, como em neon, como as luzes dos vagalumes e essa composição visual quase poética faz a fotografia de Sofia Oggioni Hatty.
O final, quando uma carta chega a personagem principal, finalmente se fecha um ciclo, onde tanto vivos quanto os que já foram finalmente terão paz. A denuncia a barganha e o desrespeito aos mortos, a memória deles e aos que ficam só não é maior que a ode a saudade que Seigner monta em seu Los Silencios, filme que tem uma força e uma carga sentimental que não permite ao espectador ficar incólume.
Christabel, filme de Alex Levy Heller começa com uma pessoa correndo pelo campo, a noite, mas sua identidade só é revelada depois. Logo depois, um casal se despede, de maneira bastante apaixonada. A moça fica, enquanto o homem sai. A moça é Christabel, e é interpretada por Mila Fernandez, não demora muito e seu silencio a noite é cortado pelos gritos daquela primeira mulher, desamparada, dizendo que foi atacada por três homens que a rasgaram e fugiram. Essa é Geraldine, personagem de Lorena Castanheira, e ela é acolhida por Bela.
No dia seguinte, o pai da moça, o dono casa, Leonel (Julio Adrião) reclama de maneira turrona por sua filha ter recebido a outra mulher, o que não se sabe ao menos até esse momento é se o motivo dessa reclamação é preocupação com a sua herdeira ou só egoísmo seu, ou um misto das suas sensações. A família leva uma vida bem simples de trabalho no campo. Geraldine está tão mal que dorme mais de um dia, fato que incomoda o pai.
Aos poucos, as duas mulheres vão desenvolvendo uma relação amistosa, que é estremecida pela ação de Leonel, que ao observar a visitante se banhar, passa a ter idéias. Após uma noite, quando ele bebe aguardente, os dois dançam e isso causa obviamente um desconforto entre pai e filha, e o conflito cresce ali. Nota-se um ressentimento duplo, dela por receber só desprezo e dele por acreditar que a menina foi a culpada pela morte da mãe.
Nos arredores da casa surgem morcegos, animais esses que não pareciam estar ali antes, ligados ao motivo místico por trás da historia, mas mesmo esse motivo não é dado de graça e gratuitamente, tudo é montado e levado gradativamente, assim como a crescente da intimidade das duas mulheres, acontecendo bem aos poucos, se utilizando da paisagem interiorana e das fases do sol, que proporcionam cenários tão belos e naturais quanto os quadros surrealista, mérito esse de Vinicius Berger que assina a fotografia que foi premiada alguns festivais.
Christabel tem muitos sonhos, e em ambos sentidos das palavras. Os sonhos quando dorme se manifestam no sentido dela poder enfim seguir o destino que sempre quis, e os sonhos no sentido de ansiar algo se manifestam semelhantemente, desejando algo além de uma vida bucólica e simples no campo, em um lugar onde parece que a tempo não passa e onde parece não haver qualquer lastro de civilização, e são as conversas com Geraldine que mexem com esses dois aspectos e sentidos da palavra para Christabel.
Exceção pela parte nos bares ou nas casas/fazendas onde tocam músicas (fato que evidentemente marca datas), o filme de Alex Levy poderia passar-se em qualquer tempo, este momento em próximo de Araguaia onde o amado de Christabel está – personagem de Alexandre Rodrigues – é o único que denuncia sua temporalidade, pois o restante do conto, poderia se passar em praticamente qualquer linha temporal brasileira.
O modo como Geraldine se move, seduzindo tudo e todos lembra a figura mitológica, chamada Súcubo ou succubus. Ela desconcentra Bela, faz o pai dar vazão aos seus desejos íntimos, variando entre o homem machista e o sujeito que finalmente vê alguém capaz de lhe despertar os anseios comuns a um homem saudável. Mas claramente, seu alvo é a personagem titulo, é fazer a menina se enxergar para além daquele cenário do campo.
A adaptação que o diretor/roteirista faz do conto de S.T. Coleridge (de 1816) é bem feita, em especial no tom de brasilidade escolhido, apesar de soar um pouco caricatural o cenário em alguns pontos, há momentos tocantes, engraçados e até em tom de denúncia ecológica, já que uma das idéias centrais do filme era que o cerrado estava morrendo. O modo se lida com os sonhos também é um ponto bem positivo.
Christabel não é um filme perfeito, é demasiado longo, tem alguns problemas e sua trilha ao mesmo tem que induz emoções, também faz o espectador sorrir por resgatar alguns sucessos do passado, mas é impossível não simpatizar com o longa, seja por suas anedotas, por seus personagens prosaicos ou pela descoberta de novas facetas sexuais. Até a sua contemplação e letargia tem função narrativa. Os momentos finais acabam sendo um poucos expositivos em um sequencia e dúbio na segunda, mas até em seus defeitos a obra de Alex Levy tem charme, sem falar que o desempenho das duas atrizes Fernandez e Castanheira é impressionante por soar muito natural e muito bela a entrega das duas.
Depois do sucesso de Animal Cordial, a diretora Gabriela Amaral Almeida prossegue em sua jornada de valorizar o cinema de gênero, dando a luz ao seu segundo longa A Sombra do Pai, um filme que se vale de sutilezas para construir o próprio terror, reunindo elementos caros ao cinema de horror brasileiro, tendo como base também um terror mais psicológico como o feito na Itália por Dario Argento e pelos diretores que fugiam de fazer meras cópias do que funcionava no cinema hollywoodiano.
A trama começa com a visita de uma mulher do censo IBGE, conversando com Cristina (Luciana Paes), que é a mulher mais velha da casa, que cuida da criança recém órfã de mãe Dalva (Nina Medeiros), e que mora com seu pai. Essa configuração familiar se mostra um pouco complicada, pois Dalva é louca para casar e sair dali, e por isso faz rezas constantes a Santo Antônio, enquanto Jorge (Julio Machado), o pai da menina trabalha demais na construção civil e não parece ter qualquer vontade de conversar com quaisquer pessoas, especialmente as que moram com ele.
Enquanto isso, Dalva tenta viver sua infância normalmente, embora não consiga estabelecer isso nem minimamente. As outras crianças a evitam, de tanto sofrer rejeição por acharem que ela tem poderes misticos, ela passa a acreditar, ainda mais quando seu feijãozinho plantado não desabrocha. Ela passa a acreditar que é incapaz de gerar vida, talvez se fosse grande poderia acreditar talvez em infertilidade, e para tentar compensar isso ela passa a fazer exercícios espirituais ligados a necromancia, claro, com que ela tem acesso, fato que é encarado por alguns como afeição a macumba.
No núcleo adulto, em especial o que toca o trabalho de Jorge, há uma reflexão sobre a situação trabalhista do Brasil, onde por de cortes de custos, um dos amigos de Jorge é demitido. Até este momento, o longa dialoga demais com Arábiade Affonso Uchoa e João Dumans, e ele passa a ter rumos diferentes a partir daí, e que facilmente poderiam ocorrer com a trajetória de trabalhador acidentado vivido por Aristides de Souza no filme mineiro, com o tal companheiro de Jorge morrendo após cair de um andar alto da obra. A discussão sobre se aquilo foi um suicídio ou acidente permeiam todo o filme, mas da parte do ai de Dalva, a declaração era de quem foi um acidente de trabalho, para que a família do mesmo pudesse ter alguma indenização dos patrões.
A forma como o roteiro lida com os dons de Dalva é muito inteligente e gradual. O mistério demora e ser revelado e a aura de suspense funciona muito bem, por conta dos pequenos eventos estranhos que vão aos poucos ocorrendo. A iluminação e trabalho da direção de fotografia de Barbara Alvez ajuda a criar uma sensação de estranheza constante, mas não prenuncia nada, a natureza da influencia sobrenatural jamais fica clara e esse mistério ajuda o filme. O choro do pai sem razões explicadas, as aparições espirituais, rumores de fantasmas tudo colabora para o mistério.
Dalva em alguns pontos do filme revela ser avatar de algumas das preferências da diretora, uma vez que ela está sempre assistindo filmes de terror em preto e branco. A predileção da menina por brincadeiras que lidam com o sobrenatural também soam muito verdadeiras. A opção pelo jogo do copo situa o filme em uma brasilidade que não tem espaço para pudor. Quase todo grupo de crianças e adolescente já brincou com isso, seja para sentir medo ou só para ter alguma chance de interação sexual, visando quebrar a timidez típica das pessoas que ainda não são adultos. No entanto, a recepção de Jorge a esse tipo de atitude de sua filha é agressiva, e talvez daí venha o titulo do filme, uma vez que a menina não consegue fazer o que quer e nem manifestar seus poderes graças a limitação de seu parente.
Quase todas as tentativas de Jorge em normalizar a família fracassam. Quando ele leva Dalva no parque, eles brincam no balanço ele quase a mata de medo ao utilizar muita força ao empurra-la. O homem desesperado não sabe o que fazer ao perceber que está adoecendo e ao perceber o apodrecimento de sua própria carne, e não sabe lidar com o crescimento da criança. A mediunidade principiante que ela apresenta pode ser apenas um paralelo para uma feminilidade que cresce e se torna um comportamento feminismo, e o macho alfa do alto de sua masculinidade tóxica não pode coexistir com isso, mas essa é somente uma possibilidade de leitura para esse embate, que parece ser mais trivial do que ideológico.
Dalva parece saber o que está fazendo, ela erra em alguns pontos, mas também se instrui corretamente e dá inicio a rituais de limpeza usando tesouras para cortar os laços do mal. Aos poucos, a frustração pelo seu pé de feijão não ter crescido dá vazão uma nova manifestação estranha e frondosa, que faz a menina acreditar piamente que é capaz de realizar outros desejos seus, anseios esses ligados a falta de ter uma família estruturada de completa. O desfecho de A Sombra do Pai consegue ser onírico e trágico e o equilíbrio que a diretora estabelecer aqui é sui generis, tanto no sentido de apresentar uma historia fantástica, quanto mostrar um exemplar preocupado com causas sociais e com o momento político do país.
Filmado nos preparativos para as Olimpíadas do Rio 2016, perto da comunidade onde ocorreram algumas ações governamentais de desapropriação de casas na Vila Autódromo em um espaço próximo da onde ocorreriam os eventos na cidade carioca, Mormaço começa mostrando sua protagonista, Ana (Marina Provenzzano), sendo coberta por uma fumaça muito espessa.
O trabalho de Ana é como assistente social, ela tenta auxiliar as pessoas que são acuadas pelo governo a resistir a essa remoção, mas ela mesma passa por algo parecido, uma vez que seu prédio está sendo inspecionado por um sujeito chamado Pedro (Pedro Gracindo). A maioria dos moradores também já cederam, e quase não há mais habitantes, exceto um ou outro, entre eles uma senhora de mais idade que é preocupada em sair de lá, por conta das lembranças e dos seus animais de estimação.
O cotidiano da protagonista varia entre confraternizações com seus amigos de esquerda membros da elite que se comporta como a autentica (e criticada) esquerda festiva e os dias no trabalho e em seu prédio. Essa rotina aos poucos a esmaga, e ela sequer percebe os hábitos terríveis que começa a ter, como o de nadar na piscina suja de seu prédio, a mesma que está em vias de ser esvaziada e que está repleta de lodo.
A natureza do emprego de Pedro é estranha e só um dos fatores que faz ele soar estranho, pois além de desalojar pessoas ele também tem uma banda de rock com elementos de mitos de Candomblé, e ouve muito Ramones. Seu envolvimento emocional com Ana soa forçada, pois é pautada em nada além de tesão e vontade de trepar da personagem, não que ela ser bem resolvida sexualmente seja um problema, mas sim porque os motivos que causam esse tesão súbito nela não são bem explicados ou explicitados, são simples sintomas de uma doença que ela contrai e que não se sabe a origem, ela apenas a tem, talvez por fruto da sociedade doente que a envolve. Essa falta de justificativa faz perder boa parte das discussões que poderiam soar profundas, mas que aqui parecem mais preocupadas em só mencionar as mazelas sociais ao invés de discuti-las.
Ana vai ficando doente, com manchas que só aumentam e que não se sabe da onde vem, se são frutos de micose, infecção, stress. Aos poucos elas vão se desenhando como manifestação da sub moradia que tem e ganha gravidade, pois o ferimento só aumenta. A protagonista piora a medida que o governo teima em piorar a situação dos moradores da vila, na boca de Provenzzano vem a pergunta se “a cidade está desaparecendo”, mas o que realmente se extingue é sua saúde.
A mancha avança e cada vez mais parece um fungo e a origem desse agouro é algo terrivelmente mal pensado, ligado as infiltrações que o apartamento da mulher tem. As duas situações de realocações se juntam, ao final, em um arremedo de roteiro que apressa todos os processos e faz pouco sentido. A coceira piora o quadro, e o hábito de se alimentar de frutas podres faz a rotina de Ana soar como nojenta. O desfecho do roteiro de Marina Meliande (a diretora) e Felipe Bragança é bagunçado e aberto, de uma dubiedade meio tola, que não explica e nem abre possibilidade de teorizar de uma maneira lógica o que ocorreu com Ana. Mormaço tenta ser um filme dedo na ferida, no sentido de falar sobre uma questão social importante para a cidade do Rio de Janeiro e para o Brasil como as desocupações, mas não se aprofunda nem nessas questões e nem no caráter fantástico da obra, fazendo toda essa mistura de elementos parecer caricatural e não séria e esse definitivamente não é o caráter que o filme quer atingir.
Bacanal do Diabo e Outras Fitas Proibidas de Ivan Cardoso começa com uma filmagem em preto e branco, com a câmera descendo junto ao carrinho, basicamente para emular um movimento de descida semelhante ao que o órgão sexual masculino faz ao penetrar no ato sexual. Não demora para, sem qualquer introdução, vir um número sobre o Draculas Club, onde mulheres semi nuas ou nuas fazem mil peripécias ligadas a vampiros, com slogans sensacionais – como Vampiras infernais, Taras Diabólicas, Rebolando com Drácula – onde as moças fazem até golden shower nas fotos de Bela Lugosi.
O filme, de pouco mais de uma hora de duração se dedica a passear pela filmografia de Ivan Cardoso, de maneira regressiva, a principio. Essa postura metalinguística não é novidade, Cardoso já se auto referenciou antes em suas obras, inclusive em alguns títulos de seus filmes mais antigos, mas a maneira com que ele monta esse filme é demasiado inteligente e moderna, pois reúne boa parte de suas influências com a sua obra e de uma maneira que até hoje é imitada, como é visto nos recentes Humberto Mauro e Cinema Novo, por exemplo, ainda que o objeto de analise desses seja muito mais catedrático.
Para quem conhece a obra do cineasta o filme é um belo rememorar, além de conter elementos novos, e claro, e para quem não é especialista da obra é uma boa iniciação, pois os curtas e fitas compiladas aqui não tem uma ordem definida e não necessitam de qualquer visualização prévia nem para serem apreciadas e nem para seu entendimento.
Em comum, em todos os segmentos, há uma ode ao rock’n roll e a exibição de belos corpos femininos, desde momentos mais tímidos das moças até detalhes ginecológicos, sejam cenas onde os órgãos sexuais das mulheres estejam em foco só por estar, bem como momentos de masturbação ou depilação. A ideia de Ivan é de normalizar o nu, e ele acerta em cheio no quesito, pois mesmo que a principio uma intimidade dessa choque é completamente natural o estado e essas imagens, e Bacanal do Diabo está muito bem dentro estigma que propõe para si, de ser apenas um retrato da obra de seu criador, acertado e certeiro, um ensaio que gera muita curiosidade pelas outras obras.
Petrus Cariry é um operário de um cinema muito particular, cuja temática mistura uma abordagem delicada com um caráter fantástico, e em O Barco o que se vê é esse caráter fantasioso se debruçando sobre uma paisagem ribeirinha, levando em conta a mitologia típica do interior do Ceará para estabelecer uma história que bebe de muitas referências sem ser refém de nenhuma delas.
O ponto de partida é uma mulher de uma comunidade de pescadores que tem 26 filhos, chamada Esmerina (Veronica Cavalcanti), cada um começando o nome por uma das letras do alfabeto. Com poderes premonitórios, ela intui que um barco chegará e toda a comunidade dali terá suas vidas e rotinas alteradas com essa “pequena” mudança. O roteiro é baseado também em um conto literário curto, de três páginas, de autoria de Carlos Emilio Correia Lima.
No barco que se aporta nas margens do rio, sai uma mulher, muito bonita, e que habita os sonhos de alguns dos cidadãos que lá ficam, com uma maquiagem forte, semelhante a de uma gueixa. Ana é interpretada por Samya de Lavor e é uma mulher sem perspectivas, que tem receio de morrer e se presta sofrer humilhações diversas, praticando um ato que claramente ela não quer fazer a fim de não perecer. O desespero por não ter perspectivas é muito bem traduzido em tela, isso sem explicitar qualquer manifestação carnal ou violência física. O domínio de linguagem que a obra traduz é realmente único.
Cariry traz à luz uma obra que novamente, como foi em Clarisse, inspirações literárias muito fortes, se vê muito do realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez e tons de terror de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, embora essa referências não sejam tão explícitas ou exageradas. Quase não há nada direto dentro da história, a maior parte do caráter do filme mora na sugestão de temas e abordagens, e isso torna a experiência muito rica.
O Barco tem um identidade própria e é mais um libelo do universo fantástico que Cariry criou em seus filmes. A simplicidade em contar seu drama é absurdo e o realizador surpreende pela sofisticação de linguagem que emprega, formatando um filme que harmoniza delicadeza e agressividade como sentimentos e sensações complementares, que tem como cola uma linha guia poética sobre a chegada de uma mulher que vem do mar, que perverte a ideia mitológica das sereias invertendo o papel de presa e predador em alguns momentos, conseguindo retornar ao status quo sempre que precisa e fazendo toda essa movimentação soar genuína.
O filme #NinfaBebê começa com uma filmagem amadora, pela câmera vertical do celular, utilizando de uma filmagem bem primária para introduzir sua personagem principal, Cibele (Dandara Adrien) uma menina linda, com a sexualidade aflorando e que adora se exibir para os conhecidos (e desconhecidos) em suas redes sociais. Uma das frases publicitárias do filme é relacionada a Curtir e ser Curtido e de fato esse é um bom lema sobre o que se mostra no longa de Aldo Pedrosa.
A obra é toda filmada em Uberaba, Minas Gerais, e Cibele vive com seu pai, que é músico e vai viajar. Ela decide curtir o fim de semana com sua amiga Daiana (Giovanna Almeida), uma menina um ano mais nova que ela, bebendo, ficando acordada até tarde e quem sabe, ter alguma experiência sexual pioneira. Enquanto a Ninfa Bebê é atrevida e super positiva, a outra menina é tímida, inexperiente e não sabe nada da vida.
Cibele provoca as pessoas que acessam as plataformas onde se exibe, dançando de maneira lasciva, chupando pirulitos de coração, fazendo basicamente o papel de ninfeta, com a alcunha que dá titulo ao filme. Nesse ponto se percebe uma das críticas que o roteiro de Pedrosa faz, não só da superexposição que alguns jovens tem, como também a futilidade que ocorre com as pessoas que sentem a necessidade de expor toda a sua vida e intimidade na internet, documentando cada pedaço de sua existência, mesmo sendo ela vazia de conteúdo, e isso é estabelecido no roteiro, sem grandes julgamentos morais.
O filme quase não tem personagens além das duas meninas. Uma das personagens que aparecem é a ex do pai de Cibele, chamada intimamente de Dedé (Rita Monteiro), uma mulher amargurada por ter sido rejeitada pelo pai da personagem-título. A interação dela com a protagonista mostra o quão falsa a menina pode ser. Alguns diálogos primam por uma artificialidade gigante e isso conversa demais com a mesma falsidade vista nas postagens típicas das redes sociais onde as good vibes imperam até sobre a verdade. Nesse ponto, Pedrosa destila todo seu veneno sobre a geração atual, trazendo isso à tona através de seu exercício de linguagem. É nessa intenção que ocorre uma interação muito antiga entre as meninas, mas que incrivelmente ainda tem popularidade entre jovens, que é o jogo Verdade ou Consequência, estabelecido ali como desculpa para desenvolver um modo das meninas confessarem coisas umas para as outras. Entre uma dose e outra, a protagonista quase assume que já pensou em matar alguém.
A busca por atenção a qualquer custo tem seus custos, e o duro preço da modernidade superexpositiva ocorre com uma obra do acaso, que serve de espiação dos pecados cometidos por ela. Apesar de falar sobre tais temas, o texto de Pedro não expõe muito, as informações sobre o passado das personagens ocorre gradativamente por meio de diálogos. As grosserias trocadas e agressividade acumulada entre as meninas tornam o filme engraçado, beirando o hilário, não é incomum ver a platéia rindo e isso de modo nenhum faz a história soar desimportante. O tempo todo as garotas flertam com o perigo e com a violência. O filme é repleto de humor negro, sarcasmo e uma comédia escatológica. Até as manifestações sinceras, como o confessar de Daiana aos vídeos que a ninfeta insiste em gravar no seu celular são repreendidos, tudo deve parecer falso, como são as postagens nas redes compartilhadas.
O final super violento faz a sensação de fim do mundo se maximizar, e mesmo não sendo uma saída perfeita, esses acontecimentos servem para mostrar o cinismo e frieza de pensamento da personagem principal, colocando isso como a principal característica de seu ser, mesmo quando trava contato com a polícia. #NinfaBebê surpreende por ter uma linguagem tão sofisticada mesmo sendo tão simples, é divertido, entretém e tem uma abordagem bastante inteligente e jovial.
O cinema de horror no Brasil tem ganhado cada vez mais força. Antes, filmes de gênero se resumiam a guetos e a realizações de um ou outro diretor, como o veterano José Mojica Marins e o capixaba Rodrigo Aragão. Apesar de não haver uma enorme cena, ao menos há alguns expoentes recentes e O Segredo de Davi, escrito e dirigido por Diego Freitas, é um desses casos.
Davi é interpretado por Nicolas Prattes e a sua jornada é trôpega e cheia de esquisitices. O menino é tímido e aparece sempre solitário. A sensação estabelecida desde o começo é de que ele não tem amigos, e mesmo os colegas de estudos que saem com ele, parecem super distantes, por mais que bebam e interajam com ele.
Não há qualquer cerimônia em mostrar os hábitos estranhos de Davi, seja pelo fato dele ser um stalker ou por querer gravar vídeos com uma câmera muito velha e de resolução terrível. A timidez de Davi é tamanha que normalmente o deixa isolado e alvo de bullys, ainda que ele revide isso. Nesse ponto há algumas coisas estranhas, pois tanto o roteiro como o personagem meio que referendam questões pesadas como a romantização de um abuso moral.
A questão é que o roteiro de Freitas parece mirar uma história bem mais complexa do que sua capacidade de direção parece ter. Os diálogos são expositivos ou artificiais demais, os simbolismos são óbvios mas querem parecer super originais, as referências literárias a Platão soam presunçosos e as referências aos filme como Evil Dead e Cabana do Inferno soam deslocadas do restante da história, até porque estão presente em só um trecho do roteiro. Mesmo os desejos e sonhos comuns a qualquer pessoa, como a vontade de Davi se tornar um artista soa absolutamente antipática, não há qualquer ligação emocional do espectador com a história ou os personagens.
A parte onde o sobrenatural começa a atuar tem um início promissor, e os sonhos ou ilusões que o personagem tem dão a chance que a direção de arte precisava para se mostrar extremamente competente. Há momentos brilhantes nessas áreas, mas até nisso há um exagero e desequilíbrio, já que em alguns pontos da exibição há um mal uso de luzes, que soam agressivas e irritam os olhos da plateia no cinema. A maior parte desses artifícios não tem função, estão lá para mostrar que as pessoas sabem fazer.
O momento mais constrangedor e simbólico se dá em uma cena em que aparece um pombo digital de textura completamente irreal e defasada se tratando de um filme realizado em 2018. O longa carece de um bom ritmo, e por ter uma duração de quase duas horas, o torna enfadonho. Há uma sequência próximo do término que tem aparentemente umas três possibilidades de final, sendo semelhante ao jovem clássico O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei, só que da maneira mais pejorativa possível. Toda a questão de ciclos e de retroalimentação das mortes poderia ser um argumento que ajudaria a salvar o filme, mas o foco claramente é na tentativa de criar uma persona de psicopata simpático em Davi, e isso faz com que o filme soe aquém até das propostas estabelecidas nele, o que é lastimável, pois Freitas parece ter um alto potencial como roteirista.
Rodrigo Aragão é uma entidade do cinema muito fiel às suas origens e aos seus gostos pessoais. Toda sua obra como diretor remete à vontade de não só de replicar as fitas trashs que apreciava desde criança, bem como o seu ofício como exímio construtor de efeitos práticos, maquiagem e afins. Dito isto, A Mata Negra, quarto longa-metragem solo do realizador é mais um pretexto para ele dar vazão a essas boas características, e que belo pretexto.
Antes mesmo da história começar se nota uma trilha sonora repleta de batuques, remetendo a outro elemento que Aragão sempre impõe em suas obras, o misticismo típico das religiões afro-brasileiras. Após uma introdução musical, é mostrado um senhor de idade avançada, lidando com Clara (Carol Aragão), uma menina órfã abandonada que ele encontrou há alguns anos. O desejo dele é que ela pegue dinheiro e saia daquele lugar, dando-lhe um bolo de notas antigas, fato que localiza este filme em um tempo passado.
Já nesse início é mostrado a aura mística muito local que Aragão propõe dentro do seu universo fantástico, já que o senhor aparece possuído por uma entidade. Ao ir à feira local a moça se apaixona pela primeira pessoa que lhe dá atenção, levando em conta sua carência e completa ausência de vida social. Desatenta e iludida ela acaba sendo furtada, mas antes de voltar a sua cabana, encontra um homem que está prestes a morrer. O sujeito lhe entrega um livro e pede para que ela reze por ele para não ir ao inferno, fato que ela prontamente faz, no entanto, ela sofre um revide, seu pai perece, e não por já ser muito velho.
O visual e a atmosfera do longa é extremamente sofisticado para o baixo orçamento que possui, e muito disso se dá pelos efeitos digitais que André Rios orquestra. Se falta talento e naturalidade ao elenco – artifício proposital do cinema de Aragão – não há qualquer problema com o visual. Os cenários dos matagais escolhidos para mostrar a intimidade de Clara e as novas descobertas espirituais que ela faz beiram a perfeição. No desespero para realizar um desejo pessoal, Clara tenta se tornar bruxa e faz um sacrifício com crianças como oferenda, a fim de tentar ressuscitar seu amado, o que obviamente dá errado.
Na segunda tentativa de ritual aparece um pastor evangélico, vivido por Jackson Antunes, e ele manda atacar a bruxa, que segundo ele, é a filha do satanás. O personagem é um dos poucos que se leva a sério, mas ainda assim não muito, de sua boca sai o aviso para que os fiéis não toquem em nada, pois ali estão as paredes ungidas pelo esperma do mal. Por mais que o filme se muna de seus próprios mitos, aqui se nota uma semelhança desse personagem com outro da cultura pop, o clérigo Frolo, de OCorcunda de Notre Dame, que se apaixonou pela cigana e a culpa por causar nele os desejos básicos e sexuais comuns a qualquer um. Tanto Frolo quanto esse pastor condenam a mulher pelas suas próprias falhas de caráter e pela sua lascívia e o roteiro deixa isso claro mesmo sem uma linguagem rebuscada.
Em Mangue Negro, o diretor fazia referências não só ao mangue, mas um pouco ao estilo musical do Manguebeat, de Chico Science e Nação Zumbi, e aqui também há referências narrativas ao movimento pernambucano. A bruxaria que Clara evoca é causada por necessidade, por pura maldade, assim como na letra de Banditismo Por Uma Questão de Classe, do disco Da Lama Ao Caos. A vida miserável e triste que a menina leva não encontra qualquer eco de bondade ou mínima alegria às suas privações, o apelo a feitiçaria ocorre por desespero e falta de opção, e obviamente, o povo não a entende, nem aceita.
Os núcleos acessórios são engraçados, como a família de Zé, interpretado por Francisco Gaspar e sua esposa grávida Maria (Clarissa Pinheiro), onde predomina uma intolerância entre o clã, com brigas e humilhações frequentes não só com o casal mas também com a velha mãe de José, uma mulher já doente. Além disso, o mal agouro paira sobre sua cabeça quando Clara cruza seu caminho, em um resumo que ela afirma que tudo que ela toca morre. A revelação da maldição é mostrada gradativamente.
A maldição continua ocorrendo, principalmente sobre os que causaram mal a Clara e a maior parte dos momentos onde há aparições sobrenaturais há uma mistura de um horror bem construído, graças aos construtos, animatrônicos e maquiagens que Aragão coloca em seus demônios, mas também um humor escrachado e histérico, que serve de válvula de escape para que o espectador não ache o todo muito pesado.
O núcleo evangélico retorna, e em meio a ele se percebe um dos plot twists do roteiro, envolvendo o personagem de Jackson Antunes, que se mostra um sujeito de caráter e índole torpe e dúbia, um falso moralista como inúmeras estrelas do gospel do Brasil. Aqui Aragão parece fazer uma crítica não só aos pastores que se aproveitam do seu rebanho, mas também aos políticos que se valem do discurso de defesa de valores de bem e da família. A crítica é certeira e mordaz.
O texto parece também ter uma vontade de referenciar o cinema de Rob Zombie à realidade brasileira. O caipira do interior do Brasil substitui o redneck como sujeito mal e perverso, mas diferente do cantor/cineasta, Aragão não julga esse personagem, no entanto, como o pensamento é pessimista/realista e condizente com a humanidade no geral, a maioria é desonesta e aproveitadora, até por conta da base um pouco niilista que o diretor usa em sua filmografia. Próximo de seu desfecho, o filme fica ainda mais divertido, graças principalmente ao culto estabelecido aos filmes de Sam Raimi, em especial Uma Noite Alucinante 2, com um ser mágico que imita a mão perdida de Ash e suas miniaturas vistas em Uma Noite Aluciante 3: Army of Darkness, e também o catastrofismo visto no final do segundo filme da saga Evil Dead e no todo do terceiro tomo já citado.
Os sentimentos de rejeição e amargura causam em Clara o desejo de destruir toda vida e seu egocentrismo se excede, mostrando que mesmo uma pessoa de boa índole pode se deixar levar pela tentação egoísta de querer destruir tudo e todos. O ser chamado de Nefastos liberado ao final é absolutamente bem feito e é a cereja do bolo de A Mata Negra, que ainda possui um epílogo ao final que faz lembrar os melhores filmes de pós apocalipse da cultura pop, uma obra soberba do cinema de nicho de Aragão.