Crítica | Mil Cortes
O desmanche das democracias atuais tem nas Filipinas seu maior representante. É o que aponta o longa-metragem Mil Cortes de Ramona Diz, participante da mostra internacional do festival É tudo verdade deste ano. O filme acompanha os esforços da jornalista e editora-chefe do portal filipino Rappler, Maria Ressa, em publicar críticas ao governo do presidente Rodrigo Duterte e lidar com os ataques e as censuras institucionalizadas.
As últimas cordas que, em teoria, sustentam o modelo democrático das Filipinas são coniventes com as ações de Duterte que giram em torno de assunção de homicídios, apologia à violência, estupro e toda barbárie observável nos discursos de líderes de diferentes nações. O cenário não é atípico, especialmente ao espectador brasileiro, e o filme chega a fazer discretos acenos ao governo de Donald Trump, vigente nos Estados Unidos durante o período de gravação do documentário.
Nesse panorama, a narrativa dilui-se em diversas frentes que tentam contextualizar a crise de estado social no país asiático. Essas subtramas tratam de milícias digitais, propagação de fake news, os discursos odiosos do presidente, duas jornalistas do Rappler e de três postulantes às eleições legislativas em 2019: o chefe da polícia nacional e voz ressoante de Duterte, uma dançarina e blogueira alinhada ao presidente e uma candidata defensora da causa feminista, de oposição ao governo.
O fio principal que entrelaça as histórias é o drama enfrentado por Maria. Desde o início, a atenção dada a jornalista indica a preferência da cobertura, que se justifica por boa parte do filme pelo motivo de sintetizar na protagonista esses diferentes lados abordados nos demais personagens. É por meio de Maria que os filipinos tomam conhecimento da divulgação de desinformação promovida pelo governo. É Maria o alvo da maior parcela de ataques direcionados à imprensa no país. É Maria que expõe os discursos de Duterte e sua base. É Maria que observa o agonizar da democracia em seu país como um possível sopro de esperança para o futuro.
A trama logo torna-se repetitiva e sobrecarregada. O que poderia soar como um aprofundamento no estado de espírito da jornalista, confrontada por todos os lados e por diferentes causas, numa enxurrada espiralar de situações, revela-se uma confusão desequilibrada. Uma porção das questões levantadas nas quase duas horas de filme é rasa e pouco faz frente à principal história que conduz o documentário. São chances de dimensionar em maior escala os dilemas éticos e políticos das Filipinas, mas que se perdem em exposições simplórias do que já é vociferado pelo presidente.
O filme também põe em pauta a importância do jornalismo como prestador de contas e de informação à população, na ideia de quarto poder. Numa das passagens, Maria parafraseia o poema do pastor luterano Martin Niemöller. “Primeiro eles vieram buscar os jornalistas”, diz. “Nós não sabemos o que aconteceu depois.”
A paráfrase condensa muito do idealismo da editora. Em determinado trecho, ela se diz pronta para o que der e vier, nem que isso seja a prisão. É o que acontece e que voltaria a se repetir no mesmo ano. Maria carrega consigo a crença de que a principal arma ante o ódio é o amor.
Do mesmo princípio parece partir o longa, uma vez que martiriza a figura da jornalista diante dos abomináveis antagonistas da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no país. Não que a sentença não seja cabível aos algozes, mas o filme tem pouco a dizer num jogo tão simples entre claro e escuro. Os Mil cortes referidos por Maria em relação à democracia filipina cabem ao próprio filme, composto por dilacerações em todo seu roteiro e que no final se apresenta como um cambaleante corpo de boas ideias e sem firmeza em nenhuma delas.
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Texto de autoria de Arthur Salles.