Crítica | O Doador de Memórias
Um filme se torna sucesso com boa bilheteria, vira tendência comercial, e o estilo é reproduzido em diversas outras produções. É a natural demanda do mercado, que fornece histórias similares, consumidas pelo público. Tramas tão parecidas e inseridas dentro de um sistema narrativo padrão que é possível deduzir sua fórmula básica em um breve raciocínio.
Uma distopia futurista apresenta, normalmente, um mundo estéril em que as liberdades pública e pessoal foram cerceadas e onde regras rígidas são a base do bom funcionamento da sociedade. Um personagem ou um grupo são avessos a esta situação e tentam modificar tais estruturas. Há uma tendência grande desta personagem ser um adolescente, um símbolo de uma nova visão de mundo e da força de luta. Ele será imprescindível para batalhas eventuais, se não resolver tudo com as próprias mãos. São histórias com estruturas semelhantes, consumidas pelo público, que reconhece esta jornada e, filme após filme, revive a mesma aventura. O que difere uma obra de outra é a maneira com que se conduz a narrativa.
Dirigido por Phillip Noyce e baseado na obra homônima de Lois Lowry, O Guardião de Memórias é considerado, pela crítica, um bom romance infanto-juvenil. Lançada em 1993, a obra é a primeira de uma série de livros chamada The Quartet (O Quarteto) e somente agora, na vertente de futuros distópicos, ganhou uma adaptação para as telas, demonstrando que, à procura em agradar ao público, estúdios buscam tanto novos materiais quanto obras mais antigas e elogiadas.
Na trama, a sociedade, que possui vigilância constante, desenvolveu um sistema em que nenhuma lembrança do passado é transmitida de geração para geração. Neste mundo perfeito, não há mais espaço para guerras, fome e sentimentos como a tristeza ou felicidade. Trata-se de um mundo ascético e estruturado sobre regras radicais e igualitárias. Como o passado deve ser preservado para que se evitem erros anteriores, há um representante conhecido como O Doador (Jeff Bridges), que retém toda a história memorial da humanidade e guarda o segredo do passado para eventuais consultas em momentos de crise.
Prestes a completar 16 anos, Jonas (Brenton Thwaites) deve passar pela cerimônia de adequação em que a cúpula da sociedade o orienta sobre a profissão que irá seguir de acordo com sua aptidão – outra repetição do gênero, a divisão em castas utilizando algum elemento específico; a cerimônia em questão é exatamente igual a de Divergente, o que nos levar a crer que o livro de Veronica Roth se inspirou neste. Por ser apto em mais de um local, o garoto é escolhido para ser o novo receptador de memórias, muito devido à velhice do doador anterior.
Em seu treinamento, o jovem contempla recortes do passado e, ao descobrir a beleza escondida pelo Estado, tenta despertar da ignorância as pessoas ao seu redor, assumindo a jornada de redentor, presente na cartilha básica de outros filmes do gênero. A fórmula prossegue até mesmo na estrutura de elenco: atores famosos em papéis importantes para dar credibilidade; uma obra adaptada e elogiada por algum veículo ou premiada em algum lugar; e um grupo de adolescentes como salvadores da pátria.
Há pouca originalidade nesta história. Devido à uniformidade exigida pelo sistema, o início é eficiente e diferenciado ao ser filmado em preto e branco, mostrando de maneira explícita um mundo regrado onde não dá espaço para o improviso. Uma visão literalmente “preto no branco” da própria realidade, cuja paleta de sentimentos humanos foi renegada. Conforme Jonas recebe as memórias do passado, as cores entram em cena, primeiro levemente, depois em tons naturais.
Afora este interessante recurso estético, a narrativa repete os mesmos estratagemas de seus semelhantes, sem uma contraposição dramática a ser superada. Em nenhum momento, os anciões responsáveis pela ordem – e liderados por Meryl Streep – demostram força para deter o garoto. Não são ativos e opressores como em outras distopias, que demonstram a mão de ferro de um sistema autoritário, o que facilita a jornada do garoto que deseja sair do domínio vigiado.
O desfecho da trama, além do eventual e óbvio gancho para uma continuação – se a bilheteria tiver um bom retorno, claro –, é risível, como se um elemento mágico fosse inserido na obra. Não traz nenhuma explicação ao público e, novamente, parece contradizer a ideia de um sistema totalitário. Talvez reconhecendo que seu público-alvo seja os jovens, a autora tenha escolhido amenizar a violência da trama. Porém, a ausência desta contraposição sabota a própria história, repetida em tantas outras obras mas sem a primordial simpatia estabelecida pelos protagonistas e suas aventuras.
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