Crítica | Madame Satã
A introdução escolhida pelo cineasta Karim Aïnouz mostra o rosto de seu personagem biografado, em um close das feições enrubescidas, nos inchaços causados pelo impacto da pele alheia sobre o rosto, hematomas de brigas físicas que visavam cercear seu espírito livre. Acompanhada da forte imagem, há uma narração do relator do conto policial, que verborragicamente define todos os pecados de João Francisco dos Santos, o Madame Satã, assinalando especialmente o crime de andar com quem anda, de frequentar os lugares mais desqualificados do Rio de Janeiro acompanhado dos maiores e piores maltrapilhos cariocas, de categoria que alcançam níveis baixíssimos.
Qualquer ato motivado pela crença na impunidade, ao ferir prostitutas, homossexuais e outros seres que habitavam o centro da Cidade Maravilhosa, é espantado pelos golpes capoeiristas do personagem. Lázaro Ramos dá vida à figura lendária dos anos 30, capturando, inclusive, nuances de comportamento contraditórios, como a de macho alfa, impositor, dono da força bruta, em paralelo à orientação homoafetiva, destruindo o estereótipo de fragilidade homofóbica, movido basicamente pela prática misógina do macho de julgar-se superior.
O estado mental indócil do “leão de chácara” respinga em sua personalidade, revelando um homem temperamental, incapaz de conter-se ao presenciar desrespeito e desaforos proferidos a si ou aos que estão ao seu redor. A destemperança de sua alma se alastra pelas ruas do Rio, concluindo-se em confusões em bares, botecos e casas frequentadas pelos ricos. Ecos dos maus-tratos que sofreu durante a vida inteira, a rejeição causada por sua condição acumulada de pária, amalgamando o arquétipo do preto e do gay.
Os tempos mostrados em Madame Satã eram mais simples, onde a punição ocorria somente com os secularmente excluídos. A polícia perseguia quem não tinha dinheiro, sem haver chance de defesa de quaisquer direitos se não fosse por parte dos ditos cidadãos de classe média, enquanto todo o restante era inimigo. O argumento de Karim Aïnouz e seu grupo de roteiristas é tristemente atual, retratando o quão punitiva pode ser a audácia do oprimido, com a diferença básica da figura que desacata a autoridade dos tratantes fascistas.
A fotografia delicada de Walter Carvalho marca um mundo colorido que teima em ter gritantes colorações, apesar da névoa cinza que teima em pairar sobre as cabeças dos personagens, a alegria que predomina mesmo diante do preconceito que habita os corações e mentes dos conservadores. A direção tenaz de Aïnouz prossegue discutindo cada argumento fajuto do comum homem homofóbico, exibindo perseguições que vão além de qualquer exibição artística, mostrando que nem sempre o entretenimento é capaz de apagar a mancha que é o pensamento pequeno de quem se julga superior unicamente ao sentir atração por seres do sexo oposto.
Os últimos momentos retratam toda a personalidade revanchista de João Francisco, fazendo o biografado retornar à cena inicial para cair na vala comum de outros assassinos, ladrões e bandidos, unicamente por dar vazão aos sentimentos reprimidos, jamais pedidos por ele, e interrompidos por agressores que tentavam em vão assassinar sua alma de artista e de homem livre.
Ao exibir o incidente do biografado, mesmo com a pena que João sofreria, o papel do agressor é subalterno diante da boemia que predominava no ideário e rotina do personagem. No carnaval, após o cumprimento de sua sentença, o personagem ganharia de novo as ruas para enfim ter a glória brilhante que lhe era de direito, ao som de fanfarras e tamborins. Como a figura máxima do carnaval carioca, ela exibe-se já sem medo, evoluída, triunfante em gênero e sexo, como a princesa do asfalto que era. Ao contrário do que pressupõem a introdução e epílogo, não há valorização da lei ou do Estado comum sobre a identidade do homem, e sim uma ode à libertação e livre expressão da natureza sexual humana.