Uma questão proeminente na produção brasileira é a questão de se assumir a estética da pobreza, quando, já sabendo das dificuldades de competir esteticamente com filmes de outros cantos do mundo, você assume suas dificuldades técnicas e parte deste saldo para tirar da frente este tipo de comparação. A série 3% tem justamente esta dificuldade estética, quando não consegue assumir para que lado ir. Há um problema claro de visagismo, onde “O lado de cá” não parece um local plenamente deteriorado, mas sim um local sujinho. Já “no lado de lá”, o ambiente superior segue uma estética também um tanto primária. Basicamente, se parece um um hospital.
Com alguns problemas de ritmo e de foco, alguns MacGuffin que não prestam-se ao papel de desvirtuar nossa atenção para o grande mistério que está por vir, mas sim de fazer parecer que nada lá tem muita importância. Que tudo são pequenas pistas falsas, deixando o solo onde a história é plantada um tanto arenoso e instável.
As atuações carecem de uma melhor coordenação de elenco, mas a responsabilidade disso é um tanto dos diálogos, que são normalmente repetitivos, dando a impressão que a série está lidando com um conceito mais abstrato do que realmente está. Então, as pessoas repetindo para si mesmas e para os outros o quanto aquilo tudo é relevante, os flashbacks sobre como a vida inteira empurrou aquelas pessoas para aquele momento único na vida e demais recursos, soam desnecessários, embora possam ser isoladamente interessantes.
Os temas da série
Sem surpresa alguma, uma série que tem como premissa um mundo onde apenas 3% das pessoas são escolhidas para terem uma boa vida, a partir de premissas aleatórias vindas de algum grupo de poder, fala basicamente sobre a potencial perversidade do conceito de meritocracia. “O mérito só depende de você”, é o que diz Ezequiel, interpretado pelo excelente João Miguel, que aqui demora a se encontrar no papel. A questão é que em um mundo desigual, onde pessoas recebem oportunidades diferentes desde o berço, a busca por uma chancela baseada em mérito se perde.
Perde-se também quando os princípios morais que regem a sociedade são tão maquiavélicos. Em O Príncipe, de Maquiavel, o mérito está tá na estratégia que se escolhe guerrear suas guerras, e sendo o resultado tal qual o planejado, você escolheu uma boa estratégia. Isso claro, não entra em acordo com princípios éticos no momento em que se é pragmático quanto ao que realmente importa são os resultados. Ora, se o que importa é entrar no Maralto, os meios serão justificados pelos fins. Não a toa é possível ver a perda da ligação social que as pessoas têm entre si, e ao menos na série, esta impostura parte principalmente daquele que consideram que têm mais a perder do que os demais. Se você considera que tem muito a perder, teria a tendência de revisionar mais profundamente seus critérios éticos. Se você já não tem nada a perder, talvez acabe se submetendo à outras ordens sociais, ou revoltando-se. Em algum momento a série flerta com o conceito então da luta de classes, onde uma solução para um conflito entre classes sociais, onde há poderes assimétricos, seria uma revolta da classe dominada sobre a classe dominante.
O problema é que dentre todas essas questões, a série parece fazer um resumo sobre os problemas que uma estrutura maniqueísta é capaz de proporcionar, inclusive sobre a má fé dos grupos revolucionários, que não raramente podem se dar carta branca para fazer o que quiserem, mas em nenhum momento diz exatamente a que veio. Em algum momento, lá para o final, quando algumas questões sobre aspectos da sociedade do Maralto são explicadas e surgem certos conflitos morais a coisa ganha um pouco mais de estofo, mas que é uma recompensa pouco satisfatória em vista dos 8 ou 9 capítulos que precisaram ser galgados para encontrar este final.
3% precisa de simpatia, mas vale a pena. Não desista da série, tem coisa lá pra refletir.
Sendo assim, é preciso certa simpatia para vencer a dificuldade que a própria série tem em se estabelecer como ficção científica. Esta simpatia, aparentemente vem sido mais frequente fora do Brasil do que dentro, pois a série conseguiu encontrar um público formador de opinião e que adquiriu muita simpatia por tudo aquilo que a série buscou representar.
Excelência é uma questão de pura prática, e a falta de tradição do Brasil em ficção científica obviamente irá se refletir em dificuldades, principalmente por que o orçamento da série não é tão suntuoso como as demais que aparecem na própria NetFlix. Foi uma série feita com recursos escassos e dificuldades técnicas. Black Mirror, por exemplo, teve uma orçamento ao menos 10 vezes maior. O orçamento maior se reflete em mais condições de revisas seu texto, recursos para montar cenas mais imaginativas, mostrar mais do que expor e ainda pagar melhor todos profissionais envolvidos. O que se espera agora é que, com o sucesso da série, possamos vivenciar uma melhora na qualidade e maiores condições de expor as ideias que em princípio ficaram perdidas na série em sua primeira temporada e assim abrir as portas para formarmos a tradição da ficção científica em nossas terras.
–
Texto de autoria de Marcos Paulo Oliveira.