Quadrinhos Disney costumam ser vistos pelo grande público como uma forma de escapismo simples e divertida, sem grandes nuances e, por vezes, até meio ingênua. Vez ou outra surge algum grande artista que resolve colocar um pouco mais de esforço em suas histórias e se dedica a trazer algo além do mero escapismo. Foi o caso de Carl Barks, nos anos de 1940 em diante, que criou grande parte do que conhecemos hoje nas histórias do Pato Donald e marcou gerações de leitores. Seguindo sua linha de narrativa e explorando os personagens desenvolvidos por Barks, nos anos de 1980 desponta aquele que seria aclamado pelo público como seu “sucessor espiritual” nas revistas dos patos. Keno Don Rosa era fã de quadrinhos desde criança, e afirmava ter se preparado a vida inteira para escrever uma única história do Tio Patinhas. Em julho de 1987 essa história foi publicada, e claramente não foi a única: muitas vieram depois e Rosa consagrou-se como um dos grandes artistas Disney!
Em outubro de 2017 a Editora Abril publicou pela primeira vez no Brasil o primeiro volume da série que se propõe a compilar cronologicamente todas as histórias Disney em que Don Rosa trabalhou. Tio Patinhas e Pato Donald: “O Filho do Sol” – Biblioteca Don Rosa é um álbum luxuoso não só para os padrões de quadrinhos Disney publicados mensalmente no país, mas para o mercado de graphic novels como um todo. O livro apresenta histórias de julho de 1987 a agosto de 1988, com notas do autor e a primeira parte de sua autobiografia. A primeira história é a que dá nome ao volume (O Filho do Sol), e é uma releitura de uma hq que Rosa tinha produzido para um fanzine em sua juventude. A história traz tudo que uma aventura dos patos deve ter: ação, aventura, comédia, uma civilização perdida, tesouros… E um vilão que, nas mãos de Don Rosa, ficou realmente assustador: Pão-Duro MacMônei, que não só usa suas artimanhas e trapaças para ludibriar a equipe do Tio Patinhas como claramente ameça assassiná-los em determinado momento. A cena em que o vilão aponta uma arma para seus rivais em um avião em pleno voo passa uma emoção ímpar aos leitores, e realmente tememos pelas vidas dos protagonistas emplumados.
Rosa segue à risca a cartilha de Barks, tratando os personagens não como patos verdadeiros, mas como uma representação da condição humana. Sua arte, muito detalhista e um tanto fora dos padrões Disney, dá o tom mais sério das histórias quando necessário. Em suas 200 e poucas páginas, vemos o autor explorar várias nuances de histórias clássicas do Tio Patinhas e Pato Donald, tanto nas histórias longas, nas curtas e nas piadas de duas páginas. Elementos clássicos como o carro 313, os Escoteiros Mirins, o vizinho rabugento Silva e o primo sortudo e presunçoso Gastão ganham o mais próximo de uma versão “definitiva” nas mãos talentosas do quadrinista. Embora esse primeiro volume ainda não apresente uma continuação direta de alguma história de Carl Barks, existem vários elementos do Homem dos Patos apresentados como homenagem, assim como a dedicatória que Don Rosa procurava esconder na maioria das suas histórias (D.U.C.K., sigla em inglês para “Dedicado ao Tio Carl, por Keno”). A preocupação com a continuidade das histórias, como num universo coeso cronologicamente, faz com que todas elas sejam ambientadas aproximadamente na década de 1950, o que se reflete nos hábitos e costumes dos personagens e na tecnologia que é por eles utilizadas – não há computadores ou celulares por perto!
O último trenó para Dawson é a mais tocante das histórias. Nela, vemos um pouco do passado do pato quaquilionário e sua juventude vibrante, que contrasta muito com a sua personalidade sovina adquirida na velhice. Essa história faz uma ponte com A Saga do Tio Patinhas, épico de Don Rosa que será republicada na coleção.
O álbum foi editado de forma muito parecida com a versão original, o que deve ter sido um árduo trabalho de negociação com o próprio Keno Don Rosa – que nunca estivera antes satisfeito com a forma que suas histórias eram publicadas. Todas as notas sobre todas as histórias, o prefácio e a biografia do autor foram escritas pelo próprio artista. O trabalho de tradução e letreiramento estão realmente muito bons, embora, por ser uma edição que se propõe definitiva, talvez algumas decisões editoriais como traduzir a moeda americana para “pataca” ou o sobrenome do velho tio para “MacPatinhas” ao invés de McPato (popularizado pela série de TV DuckTales) pudessem ter sido evitadas, como a Panini tem feito com personagens DC que tiveram nomes adaptados no passado. Mas esses são pequenos detalhes que, de forma alguma, alteram a grandiosidade da obra e a importância de sua publicação em terras brasileiras.
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