Crítica | Pasolini
Há uma conexão peculiar a ser observada entre os cinemas de Pier Paolo Pasolini e de Abel Ferrara. Pasolini, cria da segunda geração do neorrealismo italiano, inicialmente poeta, seguia o que chamava de cinema de poesia, onde filmava símbolos, ideias, referências e ideais com pouco compromisso com a realidade, preservando as regras do jogo de sua própria razão, alternando entre o lírico e o lúdico para questionar os elementos sociais italianos. Tal ideologia o levou a filmar disparidades, de Saló ou 120 Dias de Sodoma até Édipo Rei, e de alguma forma todos pareciam se completar e complementar naquele universo “pasolinesco” criado pela figura complexa que foi Pasolini, um dos grandes cineastas da Itália nos anos 70, que encontrou seu fim trágico em um assassinato bárbaro em 1975.
Em contrapartida, Abel Ferrara surge no underground dos anos 70, profissionaliza o cinema policial nos 80 e se consolida como um dos grandes cineastas dos anos 90 através dos viscerais O Rei de Nova York e Vício Frenético, onde se preocupa em emergir naquelas que se tornariam a maior característica de seu cinema: o pecado e a redenção. Usando das duas pulsões inatas a qualquer ser humano, o cineasta meio americano, meio italiano sempre tenciona uma implicância em seus filmes. Por seus olhos, todos somos capazes de andar por dois caminhos estritamente opostos onde todos tentam sobreviver às tentações e se libertar de qualquer grilhão. Há uma fé componente no cinema de Ferrara, mas nenhum dogma. É uma linha tênue existencialista, com filmes muito mais focados nas escolhas do que na predestinação característica.
Ser homem é vasto e perigoso. É um tratado em que Pasolini e Ferrara pensam de forma igual. Se o cineasta italiano naturalmente filmava a prazerosa entrega ao desejo com o horror perverso do autoritarismo e do moralismo e só por si já era um flutuante por entre movimentos políticos e círculos intelectualistas, nobrezas e periferias, um saudoso provocador que encontrava preciosidade em fazer com que moralistas fossem para suas camas com olhos estalados, cutucando o povo e os fazendo (se) questionar, sendo o 8 ou 80 do “ame ou odeie”, então não há nada estranho que o encontro entre os dois cineastas acontecesse sem qualquer estranhamento. Na quarta colaboração de Abel Ferrara com Willem Dafoe (que encarna Pasolini), todas as polaridades do italiano são expostas. De um lado, temos as últimas horas do cineasta em sua autodestruição. Do outro, vemos o que seria o futuro: um novo filme após Saló, com Eduardo de Fillipo e o ator fetiche Ninetto Davoli.
Não por motivo qualquer, a cinebiografia carrega um tom que parece ensaiar o diretor italiano. Inicialmente, o projeto de Ferrara era tão afundo na obra de Pasolini que o cineasta era mera inspiração para um filme estrelado pela atriz e roteirista Zoë Tarmerlis Lund, que interpretaria uma diretora vivendo da mesma forma que Pasolini. Seria a segunda parceria com o diretor americano. Anteriormente, a atriz já havia trabalhado no roteiro de Vício Frenético. O projeto foi frustrado pela infeliz morte da atriz. Dados os fatos, o filme assume uma narrativa episódica, recheada de momentos que não se enveredam pela história principal, mas partem dela para criar momentos delirantemente visuais em algum tipo de homenagem ao cineasta italiano, usando de algumas das marcas registradas do diretor, como os atores-fetiche, narrativas simbólicas e histórias deslocadas dentro de histórias. Se estende uma série de parábolas “pasolinescas”.
Ferrara vai atrás de um Pasolini caseiro, que acaba de chegar de sua viagem. Um Pasolini que reencontra família e amigos e que, em momento algum, veste a casaca do gênio ou do maldito. É um homem coloquial, seguindo sua história coloquial, com sua acalorada simplicidade de estar no mundo. Um homem como qualquer outro e, ao mesmo tempo, único. Após uma entrevista incompleta sobre Saló e uma advertência familiar para que pare com as polêmicas cinematográficas provocativas,, ganha sua queda pelo garoto de programa que, momentos depois, assassina o diretor com mais um grupo de homofóbicos. Pasolini em todo tempo se mostra sincero no que deseja e ácido no que questiona, tomando rumos próprios com coragem e com uma intolerante e variável rotina. Torna-se a dizer mais uma vez: Pasolini era um homem comum, mas, ao mesmo tempo, único.
Pasolini, como o próprio dizia, vivia de impulsos. Dizia não para si mesmo e não para o povo. Há uma recusa de qualquer drama fácil, de qualquer transgressão didática em nome de uma necessidade de um filme realista, que choque o público ao mostrar o choque da expressão contra a repressão quando o artista expõe sua obra. Entretanto, o medo da repressão nunca impediu nem Pasolini nem Abel Ferrara. Não há, em momento algum, uma separação entre carne e espírito e fantasia e realidade. Há apenas Pasolini sendo quem é. E Pasolini, antes de ser qualquer obra de homenagem, é um discurso. Um discurso onde Ferrara fala sobre sua mais íntima criação em sua obra estritamente intimista.
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Texto de autoria de Matheus Mota.