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  • Crítica | Nunca Fomos Tão Felizes

    Crítica | Nunca Fomos Tão Felizes

    Internado em uma escola católica, Gabriel (Roberto Bataglin) vive sua vida tranquilamente, apesar de não gostar de estar fora do ambiente estudantil, condição agravada pelo fato de não ter contato com os seus familiares. Ele recebe dos padres a notícia de que seu pai retornou, para enfim ter uma vida familiar comum. O jovem fica confuso, já que foi esquecido na igreja por oito anos, logo após a morte de sua mãe. O ressurgido pai havia pagado rigorosamente os estudos do menino, enquanto se preparava para recebê-lo novamente.

    O mistério permeia a vida de Gabriel, que sequer tem um retrato de seu pai. A relação entre os dois é mostrada como algo tomado pela insensibilidade e quase nenhum diálogo. O silêncio é motivado pelo posicionamento do patriarca, que prefere não envolver o filho nos esquemas em que têm se mantido. Os movimentos dos dois após sair da basílica é suspeita, com a queima do fusca em que transitavam.

    Ao se mudar, Beto (Cláudio Marzo) explica ao seu filho que não poderá viver com ele num primeiro momento, e que se encontrarão fora dali. Ele pede para que o jovem seja discreto, e não revele a ninguém que mora ali. No futuro eles se encontrariam de novo, quando Beto conseguisse terminar o seu estranho trabalho.

    Gabriel fica sozinho na grande casa vazia, que quase não tem móveis. O espaço desocupado e limpo serve para exemplificar como é a sua rotina e o seu campo de ideias, sem qualquer convicção mais profunda ou algo que o valha. Mesmo quando seu pai aparece, logo some, levado pela brisa que corre do lado de fora, sem qualquer aviso de quando retornará. A vontade de se aproximar de seu parente é tamanha que o moço começa a tentar conhecer o pai por meio de terceiros.

    O ócio faz a curiosidade do jovem despertar, ele começa então a perseguir os rastros de seu antecessor, que permanece distante mesmo quando está perto. O rapaz mal sabe como reagir após ganhar um bolo em seu aniversário. O afã para agradar ao pai faz com que ele cumpra suas ordens sem questioná-las, até que a situação de não respostas o abate de vez e o faz cansar de esperar.

    A realidade que acomete as vidas e rotinas nada normais de pai e filho incomodam ambas as partes. A incompreensão reina em absoluto nas duas mentes. Nenhum deles consegue ceder, ainda que as razões do pai sejam mais flagrantes e de difícil resolução. Sua quietude causa no herdeiro uma sensação atroz de solidão, que o faz sentir mais rejeitado do que antes, quando não sabia qualquer coisa a respeito do passado dos seus genitores.

    Curioso como ele age de modo dionisíaco ao se relacionar apenas com prostitutas, apesar de seu passado de criação eclesiástica. No interior de sua casa, ele realiza algumas fantasias, finalmente dando vazão à sensação que o prendeu por toda a vida. Ele continua, entretanto, convivendo com a não plenitude sentimental que o acomete, um buraco dentro do seu coração, que tem o tamanho exato de Beto. A adolescência e imaturidade não o permitem enxergar o óbvio, que não há como se alimentar ou cuidar de si mesmo como se estivesse de férias, e de certa forma essa falta de discernimento é culpa de seu pai, que mesmo quando está ao lado dele, é ausente, sem conseguir compartilhar com seu rebento os momentos mais importantes da sua vida e sem conseguir passar para o moço a mensagem que tanto pregava e pela qual lutava. Carente, Gabriel parece não saber a quem mais recorrer, quando o mistério toma o único adulto que lhe é caro, e ele termina assim, sem perspectiva e possivelmente, sem um futuro garantido.

  • Crítica | Pra Frente, Brasil

    Crítica | Pra Frente, Brasil

    Pra Frente, Brasil

    Focando o ufanismo e discutindo a máxima de “Ninguém segura esse país”, Roberto Farias faz uma obra que tem em seu começo um clima muito semelhante ao das pornochanchadas. O intuito é ludibriar o espectador, fazendo-o acreditar estar vendo mais um espécime comum do cinema brasileiro dos anos oitenta e em poucos momentos de tela já é apresentada uma reviravolta. Misturando o ideal do Dream Team da seleção, destacando “as feras do Saldanha” — injustamente retirado do cargo antes da Copa de 70. Já na introdução é desenhado o mapa político e social de Pra Frente, Brasil, sem se valer de esterótipos bobos, de militares caricatos e maniqueístas e apresentando os oposicionistas como pessoas comuns, agindo cautelosa e disfarçadamente.

    O ano de lançamento da fita era 1982, enquanto os militares ainda estavam no poder, apesar de já não exercerem “a mão de ferro” com tanta veemência. A história começa mostrando Jofre Godoi, interpretado por Reginaldo Farias, um pacato servidor público que é confundido com um militante pelos militares, por estar no lugar errado e na hora errada. Logo que ele é capturado, é levado a um interrogatório. Sem circunlóquios, é submetido a algumas provações físicas e palavras de humilhação, envolvendo até a figura de sua esposa. O desaparecimento de Jofre faz com que a polícia entre em contato com o irmão dele, Miguel (Antonio Fagundes) e a esposa Marta (Natália do Valle), numa alusão a um defeito das autoridades, levantando a possibilidade ou de fingimento e sonegação de informação por parte da polícia ou de completa falta de estrutura e comunicação entre os órgãos.

    Jofre é submetido à violência, mas não sofre as surras calado; sua reação faz com que os torturadores ajam com mais dureza ainda. As mortes envolvidas no caso não são sequer noticiadas nos jornais. A personagem Marta serve de orelha para o discurso de que toda a imprensa é censurada. Do núcleo principal, somente Miguel tem clarividência sobre o panorama da nação: sua fala “Isso aqui não é a Suíça” evidencia o descaso com que o cidadão comum é tratado. Mesmo dentro do oikos de Miguel e Jofre, há quem ignore por completo a ausência de liberdade.

    A ansiedade e a preocupação fazem Marta ir às vias de fato, investigando o caso do desaparecimento de seu marido, inclusive utilizando-se de uma identidade falsa. Ela não vai presa por um triz. Paralelamente, Jofre é mostrado em seu cárcere, sem conseguir responder convenientemente aos seus agressores por tipificar-se categoricamente como um apolítico e de ideologia neutra. O típico sujeito normal que valoriza a família, a moral e os bons costumes e que, de um momento para o outro, tem todos os seus direitos retirados, como se não fizesse diferença alguma a sua postura anterior. Sua conclusão é de que aquele tratamento desumano é imerecido para todos os brasileiros.

    Mariana (da ainda muitíssimo bela Elizabeth Savalla), a amada de Miguel, engaja-se na militância de protesto. Num dos encontros com um dos “companheiros”, o personagem Zé Roberto é mostrado em uma iluminação diferente, com uma sombra sobre o rosto, emulando uma dualidade justificada pelo pretenso comportamento subversivo no âmbito político.

    Episódios comuns à historiografia são mostradas ou mencionadas no roteiro de Roberto Farias, Reginaldo Faria e de Paulo Mendonça, como, por exemplo, os casos dos “dedos-duros”; o controle das comunicações por meio de telefones grampeados; blitz organizadas em inúmeras estradas públicas. O posicionamento neutro não garantia aos civis a segurança de não serem reprimidos, graças à paranoia destes, pelo contrário, fazia com que fossem malvistos pelos membros da oposição que enxergavam-nos como acomodados, conformados com a situação calamitosa do Brasil. Os membros da repressão invadem os domicílios sem qualquer menção à permissividade, humilhando e maltratando mesmo os colaboradores do Regime. Até alguns dos homens fardados contestam a violência das ações, claro, de forma moderada, para que não sejam confundidos com os vermelhos.

    Miguel cansa de esperar a polícia e se posiciona contra os milicos, ameaçando o empresário Geraldo (Paulo Porto) de morte. Junto a ele, Miguel vai até a uma sessão de tortura, assistida por outros homens importantes, tornando óbvia a participação dos cidadãos influentes e comuns. Sem o apoio destes, a ditadura jamais seria legitimada.

    O desfecho narrativo ainda guarda algumas surpresas, como um embate entre um grupo de controle dos subversivos, que cerca Miguel e os seus dentro de uma casa, pondo em risco até a vida dos filhos de Jofre. O tiroteio generalizado deixa muitos mortos e é bem otimista se visto pelo lado dos protagonistas, até que ocorre a perseguição de carros na frustrada tentativa de fuga.

    O filme ficou somente um dia em cartaz: o regime censurou o copião logo que veio a público, por achar que o roteiro de Roberto Farias tivesse sido inspirado em situações reais, ligadas à Operação Bandeirantes, algo que realmente ocorreu.

    O momento da tragédia para Miguel é mostrada paralelamente à vitória da seleção de Zagallo no México, transitando entre o esporte inebriante, como os efeitos do ópio, e a dura realidade das pessoas comuns. Ao final, pouco antes do início dos créditos, há uma citação em texto, com a imagem da torcida congelada e os dizeres: “Este é um filme de ficção”. Traz uma dualidade ao tema, pondo em xeque a postura do governo e, claro, o papel alienante que o esporte tão idolatrado exercia na mentalidade do povo. Para a execução da fita, foi necessária muita coragem por parte de seus idealizadores.