Tag: David Carradine

  • Crítica | Sexy e Marginal

    Crítica | Sexy e Marginal

    Em primeiro lugar, temporalmente como é o caso aqui, nos é mais do que injusto esperar algo revolucionário de um cineasta revolucionário que ainda não havia chegado nesse patamar, exceto se o nome desse cara for Orson Welles. Mas é sempre estranho consumir algo, digamos, “lugar-comum” de alguém que você sabe das coisas maravilhosas que esse alguém já foi capaz – feito aquele livro rotineiro, ou a música mais ou menos de quem você já provou algo melhor.

    Segundo que, Sexy e Marginal, o segundo longa oficial de Martin Scorsese após o seu debute de qualidade com Quem Bate à Minha Porta?, é uma clara preparação para um dos seus melhores filmes que viria logo a seguir: Caminhos Perigosos (Mean Streets, num título mais apropriado em inglês). Aqui, a estrada é devidamente pavimentada para sua carreira, mas a falta de habilidade do grande mestre na direção atrapalha em vários momentos, em especial se o espectador está acostumado com a excelência cinematográfica que Scorsese viria a conquistar.

    Contudo, Scorsese já observava a realidade, no passado ou no presente, de uma forma bem conflituosa, como quem encara o mundo, independente das gerações no comando, com uma ótica de competitividade e ação progressista. Para isso, usa da tensão política que os EUA viveu nas suas primeiras décadas do séc. XX afim de nos apresentar Bertha Thompson, uma dócil Lolita progressivamente transformada numa Bonnie Parker devido a condição difícil que passa a enfrentar nos idos da sua vida de temores, principalmente após a morte do seu pai. É um dos desabrochar filmados de uma flor, menos frágil e mais destemida a cada dia, para encarar os conflitos de um mundo masculino e machista a base de jogatina, tramoia, traição e revolução.

    O cineasta, inserido numa época e no drama de uma garota desamparada, mira no passado sem deixar de olhar para o futuro, através das mudanças que as novas tecnologias acarretaram e sempre produzirão no cotidiano dos lugares, e seus habitantes. Um amanhã simbolizado pela ferrovia que avança feroz pelos EUA, significando os avanços positivos e negativos que irromperam pela pátria afora e sem pedir licença, a despeito dos moradores mais tradicionais, e do complexo espírito humano que sempre continua o mesmo. Scorsese sabe disso, e cria momentos que demonstram ou apenas, com certa sutileza, evidenciam a nossa relação com as questões que moldam nosso caráter, ações e relações, sem cair no sentimentalismo piegas que tanto seduz os mais precipitantes dos artistas. Scorsese jamais se permitiu ser qualquer um.

    Iria fazer alusão novamente aos períodos difíceis do seu país no conturbado Gangues de Nova York, talvez um de seus menos recomendáveis filmes, posto que não é diretor de filmes genuinamente ruins. Em Sexy e Marginal, Scorsese fez encenar o recorte de um tempo através do comportamento de uma personagem feminina e dos acordes de uma música folk vindos da gaita de um negro. Dois grupos sociais marginalizados na época, cujo os caminhos tortuosos repleto de fugas, matanças e reviravoltas, identificam-se por diversas semelhanças. Alheio a quaisquer estereótipos como sugere o título em português (de novo, a tradução brasileira erra feio acerca da essência de um filme do diretor), e evidenciando a força de uma mulher em sua filmografia, como iria demonstrar mais uma vez no ótimo Alice Não Mora Mais Aqui, eis um pequeno e esquecido filme nacionalista, assim como merece ser visto, e total merecedor da nossa visita estimada, ainda mais se você for fã de um dos mais famosos filhos da Big Apple.

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  • Crítica | Hell Ride

    Crítica | Hell Ride

    Silencioso em seu início, Hell Ride é movido pela ilusão de uma musa que inebria o imaginário de Pistoleiro, personagem de Larry Bishop, ator que também dirige o filme. Logo no começo, ela é cortada, já que assim que abre a boca, termina com qualquer possibilidade de santidade na abordagem da fita. Em menos de quatro minutos de exibição, os signos visuais já demonstram a rotina do seu herói, ligada  – e muito –  a sexualidade e violência extremas.

    O arquétipo gráfico provindo dos filmes noventistas de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino (produtor do filme) é notado de cara, ao mostrar um deserto repleto de sangue, chumbo, cadáveres e referências à figura diabólica, além de uma ode à pornografia em geral. A tentativa de emular os momentos de Um Drink no Inferno é válida, no entanto, o excesso de flashbacks e a linha temporal pouco afeita à normalidade são maneirismos que irritam o público logo no início, a despeito até da estética de “sexo, drogas e rock’n roll“.

    Ultrapassada essa excessiva transição temporal desmedida, é contada uma trajetória de vingança que remete a um infante que assiste à morte de uma índia cherokee inocente, resultado de uma inimizade entre duas gangues de motoqueiros que cobram um alto preço pela morte. Os dois lados opostos são os Victors, liderados na contemporaneidade pelo Pistoleiro, e os 666 Wings, afiliados a Billy Wings (Vinnie Jones), que com sua metralhadora/besta, impinge aço àqueles que se opõem a sua vontade e ao seu regime.

    A volúpia por repetir alguns dos elementos de ebriedade vistos em Sem Destino soa risível. Bishop filma momentos em que são manejadas drogas pesadas, causando na lente uma diminuição de velocidade, como se o mundo tentasse adequar-se à tontura causada pelo uso excessivo de entorpecentes. O artifício funcionou para os anos sessenta, mas em 2008 soa como um pastiche, como um conto caricatural sobre os elementos típicos do estilo de vida sob duas rodas.

    O elenco de coadjuvantes é estrelado pelas figuras carismáticas de Michael Madsen, David Carradine e Dennis Hopper, que tentam esconder a falta de capacidades dramáticas dos protagonistas, especialmente de Eric Balfour, que vive o novato Comanche dos Victors. Toda a curta duração do filme se encaminha para o embate entre Pistoleiro e Billy Wings. Uma vez alcançado, o entrave mostra-se truncado, mas com uma boa dose de violência extrema, qualidade que demora demasiadamente a ser explorada, mas que ainda assim é insuficiente para as expectativas ligadas a um filme B, como esse.

    Todo o sangue e depravação que vêm dos quase noventa minutos de duração do filme de Larry Bishop escondem uma mensagem de fraternidade e honra, que, no entanto, não é super explorada, uma vez que o roteiro se rende até aos clichês mais básicos como a tão repetida questão do amor imortal, tendo a justiça como o norte e objetivo a ser seguido. Em paralelo aos comentários sociais e anárquicos dos filmes que o inspiraram, Hell Ride não diz quase nada, serve apenas uma distração munida de elementos comuns aos produtos de mountain bike.

  • Crítica | Kill Bill

    Crítica | Kill Bill

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    Quentin Tarantino é, antes de revisionista ou mero imitador, um autor de remix: alguém que se apropria de características específicas de um gênero, chegando até mesmo a emula-las de modo literal, mas sempre ressignificando-as. Os filmes de gangster, o cinema black exploitation, os longas de guerra e os westerns já passaram pela lente única deste diretor que a cada novo trabalho endossa a construção de um legado que, nos termos de sua própria ambição, marcará a história da sétima arte. Dentre as obras de sua, até então, curta filmografia, apenas duas se debruçam sobre a mesma história: Kill Bill: Volume 1 e Kill Bill: Volume 2, que, a bem da verdade, compõem um único filme – condição na qual será tratado neste texto.

    Em uma grande homenagem aos filmes de artes marciais chineses e japoneses, com pitadas generosas de western spaghetti, Tarantino narra a história de Beatrix Kiddo, conhecida durante toda a primeira parte da saga somente como A Noiva, uma assassina que, após passar cinco anos em coma em razão da traição perpetuada por seu ex-afeto e mentor Bill, busca se vingar deste e dos outros quatro profissionais responsáveis pelo massacre que destruiu sua vida. Interpretada de forma altiva por Uma Thurman, a personagem protagoniza algo ímpar na carreira do realizador: não ostentando os longuíssimos e espirituosos diálogos que tornaram célebres seus primeiros trabalhos – não que estes inexistam por completo, uma vez que Tarantino não falha em entregar ao menos meia-dúzia de conversações marcantes ao longo da jornada –, Kill Bill é focado na ação sanguinolenta, propositalmente absurda e irreal, que se dá por lutas coreografadas de modo fluído e graficamente impactante.

    O impacto, aliás, revela-se como preocupação-mor do diretor no desenrolar dessa trama de vingança, na qual os eventos são apresentados em dez capítulos dispostos em ordem não cronológica, recurso empregado não para criar uma narrativa mais instigante, como ocorre em seus dois primeiros filmes, e sim para brincar com nossas expectativas, guardando as passagens mais espetaculares para os momentos mais oportunos, a fim de, justamente, causar o maior impacto possível. Essa escolha, longe de ser desonesta, funciona de modo ideal; a fuga de Beatrix da cova em que é enterrada viva não teria metade do efeito caso não fosse precedida pela icônica sequência de treinamento com Pai Mei, e o mesmo se pode dizer da introdução da Noiva, cena na qual, ao cometer um homicídio e, em seguida, conversar de modo afetuoso (sem, no entanto, demonstrar um pingo de remorso) com a filha de sua vítima, a personagem revela com precisão o caráter da assassina implacável, porém justa que acompanharemos durante as próximas horas.

    A violência exagerada, as técnicas sobre-humanas e os absurdos de toda espécie que permeiam a trama são também recursos utilizados no intuito de impactar o espectador, que a todo o momento se depara com decisões tomadas única e exclusivamente em função do estilo, dentre as quais se destacam uma sequência de combate em que são mostradas apenas silhuetas, e o flashback que entrega o passado da personagem O-Ren Ishii, no qual somos transportados para um anime excepcionalmente bem realizado pela equipe do Production I.G à época. Essa sequência em animação deixa patente a influência do entretenimento japonês na construção de Kill Bill, fato que, longe de ser segredo, é ainda referenciado por vezes sem conta, como percebemos na grande similaridade do roteiro com o de Lady Snowblood, filme de 1973 baseado no mangá homônimo – No Brasil, Yuki – Vingança na Neve –  de Kazuo Koike (mesmo autor de Lobo Solitário, obra também mencionada em um ponto avançado do filme), ou no uso demasiado de closes fechadíssimos nos olhos dos atores.

    Embalado por uma trilha sonora arrasadora, outra notória característica dos trabalhos de Quentin, a história caminha, ora esbarrando em belas canções como Bang Bang (My Baby Shot Me Down), de Nancy Sinatra, ora encontrando o som enérgico da banda japonesa The 5.6.7.8’s, para um desfecho que, propositalmente anti-climático, consegue ainda ser catártico, entregando o que promete o título. Tarantino se diverte ainda dando algumas pinceladas no que convém se chamar de seu universo, enfiando no roteiro uma participação do divertido xerife Earl McGraw, que morre no começo de Um Drinque no Inferno e dá as caras novamente em À Prova de Morte, ou colocando Samuel L. Jackson de modo misterioso na capela em que ocorre o massacre que motiva toda a vingança – o que muitos acreditam ser o trágico fim de Jules Winnfield, seu personagem em Pulp Fiction. Ousado e extremamente violento, na mesma medida em que é divertido, Kill Bill configura, enfim, um projeto ambicioso, que dificilmente será lembrando como um clássico, mas que, sem sombra de dúvida, será lembrado.

    Texto de autoria de Alexandre “Noots” Oliveira.