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  • Crítica | A Batalha de Argel

    Crítica | A Batalha de Argel

    A Batalha de Argel

    Ambientado no ano de 1957, apenas nove anos antes da feitoria do filme, A Batalha de Argel registra em preto e branco o quão anacrônicos eram os métodos utilizados pelo exército francês a fim de tentar esmigalhar os ativistas políticos pró-independência argelinos, liderados pela Frente de Libertação Nacional. Com tema musical de Ennio Morricone e direção de Gillo Pontecorvo, a obra ajudou a remontar a urgência por identidade buscada pelo povo e nação, fazendo do filme mais um marco do cinema político clássico.

    Pontecorvo tem um cuidado sui generis em retratar tanto a violência dos conflitos, fatos inegáveis em se tratando de um levante popular – indo na contramão do discurso politicamente correto a respeito de manifestações sem confusões que acomete alguns discursos pós modernos – como também guarda espaço para desenvolver a docilidade do povo, que dá prosseguimento a sua vida comum e ordeira, realizando seus ritos religiosos e enlaces matrimoniais e humanizando os revoltosos, que normalmente são execrados por quem conta as histórias, em especial europeus que perderam o embate.

    Não há glamourização da luta pela libertação. As bombas que contemplam o território argelino são colocadas em pontos estratégicos. Os detalhes da câmera mostram a sujeira dos locais, o temor dos revolucionários e o medo, tanto de ser pego quanto de fazer mal ao homem comum do país.

    Há uma sequência que mostra de maneira didática a alienação que acomete parte da população. Há uma explosão de bomba em um estabelecimento comercial genérico, perto de uma danceteria que toca música caribenha. Quando ocorre o estouro, todos vão para fora a fim de ver o que ocorreu, mas movidos unicamente pela curiosidade e não pela empatia, uma vez que, assim que a música volta a tocar, retornam rapidamente ao entretenimento, até ocorrer outro atentado exatamente naquele lugar, fazendo a alegoria bíblica de que o salário do pecado é a morte, e a omissão, injúria.

    Após uma hora e meia de exibição, as discussões estratégicas, lideradas pelo coronel Mathieu (Jean Martin), dão lugar a demonstrações de tortura como arma de condicionamento do povo cansado dos desmandos dos antigos poderosos. Ao menos nesse instante, não há preocupação com sutileza, ainda que um mundo de nuances e emoções conflitantes estejam presentes nos espectadores dos atos cruéis contra seus compatriotas, observados pelos closes certeiros que enquadram o olhar dos civis atemorizados.

    O período compreendido no clássico de Pontecorvo é bastante curto e pontual: o início da revolta que daria fim à opressão europeia sobre a nação africana, como um retrato do embrião da soberania local sobre a bruta colonização externa. O período conflituoso se arrastaria por mais dois anos. A Batalha de Argel mostra um levante popular, sem romantismos ou utopias, registrando de modo pragmático o martírio de uma população cansada de ser explorada gratuitamente. E sem respeitar o distanciamento muitas vezes empregado em relação à crítica aos antigos chefes de colônia da Europa.

  • Crítica | Queimada!

    Crítica | Queimada!

    QUEIMADA 1

    Clássico de Gillo Pontecorvo, o drama político Queimada! mostra uma história de manipulação e libertação. Sir William Walker, vivido pelo astro Marlon Brando, é enviado pela coroa britânica a fim de cumprir com os escusos desejos reais a respeito de uma ilha caribenha. Seu ideal é incitar a população a uma revolta popular, depondo assim o governo atual, para gerar instabilidade política, que favoreceria os negócios com a tal região.

    Walker é um sujeito sorrateiro que usa de sua influência para arquitetar um futuro bom para si e para seus empregadores. Apesar de ser uma aventura histórica, o roteiro de Franco Solinas e Giorgio Arlorio, baseado no livro de Norman Gant, não se preocupa a retratar os fatos e pessoas de modo literal, tangenciando sobre a realidade como em um conto realista. Com medo de ser censurado, Pontecorvo teria mudado o domínio que seria espanhol para português, graças ao regime militar que imperava na Espanha em 1969. A ilha de Queimada guarda muitas semelhanças com o Haiti, que teria tido seu nome trocado exatamente para driblar possíveis boicotes.

    Um dos papéis centrais é de José Dolores, vivido por Evaristo Márquez, um nativo que é tratado de modo rude por Walker e que aos poucos ganha sua afeição, bem como uma preparação para tornar-se um líder carismático de seu povo. Nota-se facilmente, no modo de operar do agente inglês, traços da filosofia maiêutica, em que o influenciador faz sugestões leves que de modo sofista vão alterando o ideal do tal líder em construção, no caso Dolores. As sugestões não são diretas, mas são construídas detalhadamente a ponto de gerar no escolhido a sensação de epifania autoinduzida, como se tais paradigmas estivessem em seu pensamento o tempo todo, ao invés de terem sido implantados.

    Pontecorvo não tem pudor em mostrar um personagem central canastrão e falacioso, que ganha nuances exatamente pela inspiração de Brando, que consegue expressar bem a canalhice do mentor fajuto. O viés ideológico comunista se vê na condução dos fatos, ao explorar os defeitos desse tipo de invasão e intervenção imperialista estrangeira, curiosamente ainda muito em voga atualmente, vide a situação de guerra ao terror dos Estados Unidos com os países árabes ricos em petróleo.

    Os pequenos detalhes no visual dos personagens dizem muito mais do que suas atitudes emulando o jogo de falsidade e cartas marcadas que ocorre durante o filme. Enquanto José se veste de trapos, exalando humildade, William é um homem de trajes bonitos, mas de modos e trajes elegantes para o local, fator que já o sobe de patamar naturalmente. No entanto, são seus pelos que dizem mais. Como se aquele trabalho fosse apenas mais um dentro da sua rotina, a barba por fazer determina um descompromisso com padrões, combinando com suas madeixas oleosas, não grandes o suficiente para atravessar os ombros, mas o bastante para ficarem descabeladas ao menor sinal de vento. Não há preocupação moral ou vergonha ética nos modos de condução executados pelo personagem vindo da Europa.

    A apologia feita por Pontecorvo ao proletariado ganha ares de importância ao demonstrar as condições insalubres que o povo de Queimada considera rotina. Os fatos corroboram a ideia de que os colonizadores eram cruéis ao extremo, ao contrário do que gostam de propagar os países europeus. Nem da parte dos portugueses/espanhóis e nem dos servos da Rainha há heroísmos.

    O embate entre criador e criatura é rápido, mas intenso o suficiente para uma troca de carinhos. Dolores retribui o treinamento que recebeu com um cuspe no rosto de seu professor, um revide agressivo e humilhante para quem o reduziu a um falso profeta, a um messias fajuto que viria para supostamente incitar seu povo e que, na realidade, domaria os pobres para que outros ricos o explorassem. Pontecorvo não faz concessões, tratando Walker como se trata um vilão, mostrando-o com um destino mal, tão ruim quanto suas atitudes manipuladoras. O artifício pode parecer maniqueísta, mas a escolha é sábia por se tratar de uma universalização do tema, resultando então em um paradigma vilanesco indiscutível, pondo o imperialista no lugar que lhe é devido diante da discussão ética do decorrer da história humana.