Crítica | Superman: Entre a Foice e o Martelo
Depois de dezessete anos após o lançamento da revista, finalmente a versão animada da DC adapta Superman: Entre a Foice e o Martelo, revista consagrada de Mark Millar com desenhos de Dave Johnson cuja premissa é bastante simples: e se o bebê kriptoniano que se tornaria o Superman caísse em território soviético e não americano. Coube a Sam Liu a responsabilidade de conduzir essa versão, e infelizmente essa é mais um longa-metragem com o pouco apuro visual e com um traço feio e genérico, semelhante em muitos pontos aos filmes que adaptam os novos 52.
A trama começa em 1946, na URSS, e já começa legal por mostrar uma versão bem encaixada das contra partes de Clark Kent e Lana Lang em terras russas/ucranianas, seguidas dos créditos iniciais que mostram capas e imagens clássicas do gibi. Este início quase ludibria o espectador, uma vez que mora nessa introdução os momentos mais brilhantes do roteiro, ao mostrar as propagandas soviéticas como uma arma eficaz na guerra ideológica, mas até as intenções dessa questão servem a um propósito complicado e maniqueísta de maneira desnecessária.
As passagens de tempo soam confusos, assim como as relações entre os personagens. A cumplicidade entre a figura de autoritária Joseph Stalin e o homem intransponível inexiste, assim como não existe qualquer tensão pessoal entre o personagem principal e qualquer outro aliado. O filme carece de personagens que sejam dúbios, e em se tratando de um filme sobre a Guerra Fria isso é um pecado terrível. A relação que deveria ser parental entre político e super humano é suavizada de modo que não há qualquer dualidade, nem em Super, nem em Stalin e em mais ninguém e por mais que a HQ seja digna de críticas negativas, esse tipo de problemática não vinha do texto de Millar.
Ao menos, há tentativa de abordagem mais delicada do camponês que ascendeu ao supra sumo da humanidade. A superação das barreiras do ordinário situa o personagem no exato oposto do que Jerry Siegel e Joe Shuster pensaram para o kriptoniano original, ao menos em geografia, pois os ideais do Superman clássico (o que nem voava e era visto em Superman Crônicas) tinha ideais marxistas. Uma pena que esse aspecto seja breve, passa rápido demais para causar espécie.
Os gulags são mostrados de modo bem caricato e todo o orgulho presente na identidade socialista soviética não tem qualquer menção ou exaltação. A maior preocupação do roteiro de J.M. DeMatteis (que comete quase tantos equívocos quanto seu colega quadrinista Brian Azzarello em Batman: A Piada Mortal) é fazer paralelos entre os campos de concentração nazista e esses lugares, incluindo aí uma mise-en-scene terrível, de um garoto flagelado e hiper moralista que tem até morcegos atrás de si (e que um tempo depois, se tornaria um personagem famoso). O primeiro ponto de ruptura é cedo demais, com um terço de filme o Superman já é um assassino tirano que não tem nenhum questionamento mesmo quando ele toma o poder sobre o antigo soberano.
As tentativas de paralelos com o universo comum da DC variam de qualidade. Por mais que a Diana/Mulher Maravilha seja uma personagem bem explorada aqui, a aliança entre Themyscira e URSS faz pouco sentido. A luta contra o Bizarro também, e a versão de Lex Luthor aqui é mais virtuosa até que a contra parte que era herói que combatia a Sindicato do Crime em uma das versões do universo DC.
Alguns pontos são positivos, como a participação de Lois e Lane e da Mulher Maravilha, mas nada que salve o filme do texto de propaganda do American Way of Life ou da total distância entre ele e quase todas as obras do Superman, sejam as que se baseia a revistas ou as mais clássicas. A mudança do final em é necessariamente um problema, mas toda a construção moral do personagem, sua modificação para ser um vilão não faz qualquer sentido visto os últimos atos dele, que se joga como um sacrifício meio nulo
Em alguns pontos a historia é panfletária de uma maneira até mesquinha. A questão do Muro de Berlim e o modo como se fala da influencia socialista ser encarada como cancerígena é podre, e no filme não se mostra o colapso que o capitalismo teve na época do poderio do Superman como líder dos soviéticos. Ate por essa construção malévola dele, não faz sentido insistir em demonstrar que o herói é belo, benevolente e preocupado com o bem estar mundial, pois mesmo Lex é mais honesto e bom do que o personagem-título.
Do ponto de vista narrativo o filme peca muito não só na figura do Super mas também na do Batman, que é um poço de clichês. Há também uma dificuldade em traduzir a essência do Superman nessa e por mais que Millar tenha mudado muita coisa nos rumos da vida do herói, mas o cerne e o básico, o essencial estava lá ao menos na premissa e aqui não, e nem é somente pela questão do personagem matar opositores sem dó, mas basicamente por não se enxergar nele nem um resquício do do herói clássico. Nenhum distanciamento entre como o povo vê seu governante e como ele realmente é justifica isso.