Tag: Kiyoshi Kurosawa

  • Crítica | Antes Que Tudo Desapareça

    Crítica | Antes Que Tudo Desapareça

    É por isso que o cinema do Kiyoshi Kurosawa do século XXI é tão importante. Enquanto toda uma safra atual preocupa-se em reciclar olhares sobre os mesmos objetos de sempre, de uma forma ou de outra, como uma nova roupagem para um corpo mofado de tão velhaco e primordial que se tornou há muito, entusiastas magistrais como o citado cineasta nipônico ressignificam não apenas as possibilidades atuais de se fazer um filme, como as vertentes imaginativas e euforicamente práticas dos próprios gêneros cinematográficos que já ousou tocar – romance, suspense, e agora a ficção científica. Estamos falando, é claro, de um Guerra dos Mundos (quase) sem efeitos especiais. De um Sinais com causas e consequências verdadeiras. De uma mistura inesperada e inesquecível de Vampiros de Almas, com toques extras de A Aldeia dos Amaldiçoados e tantos outros clássicos modernos. E, como se não bastassem as prerrogativas em torno de um conto de duas horas da mais pura excelência contida e elegante que o xará do criador de Rashomon já conseguiu atingir, você certamente o verá figurando entre os melhores dessa década.

    Na trama, uma invasão alienígena está em curso. Não há nada para impedi-la, pois seus arranjadores não só estão a plenos vapores como assemelham-se ao fator da indestrutibilidade corporal. Simbiontes, incorporam hospedeiros humanos (sim, igual um Venom que nunca dá o ar da graça) na busca pelo Japão por colher informações exclusivamente humanas. Ou seja, estudando e aprendendo com a raça dominante da Terra antes da cartada final – deles, claro. Orson Welles já usou essa historinha há mais ou menos uns 70 anos atrás, e assustou meio mundo com isso – exato, todos acreditaram que era verdade. A partir dessa situação realista que Welles propôs, mas sem o elemento do alarde e do espetáculo grandiloquente hollywoodiano, Kurosawa discursa sem apologias e com meia dúzia de personagens sobre o nosso lugar na esfera terrestre, sobre os problemas que enfrentamos e que, talvez, só com um olhar extraterrestre consigamos percebê-los de verdade, cegos por rotinas mundanas e por escapismos crônicos dos mais diversos tipos, e das mais variadas fontes de consumo e de individualismo ético que presenciamos, cada vez mais, entre os nossos iguais.

    Em certo ponto, numa conversa entre um homem normal, e um garoto-fantoche já possuído mentalmente pela criatura por detrás da sua pele, numa clara alusão a alienação midiática que todos e em especial os mais jovens são facilmente expostos, hoje em dia, o humano pergunta ao alienígena sobre coexistência. Pois seria possível duas raças juntas, sob as mesmas nuvens, e em paz? O outro ri, racionalizando o medo do homem comum, incapaz de equilibrar algo aparentemente tão humano como emoção, e razão. Somos feitos dessa mistura, Kurosawa nos lembra. Coração e lógica num uníssono sobre aquilo que nos constitui, substancialmente falando. E a forma como o cineasta constrói e descontrói noções ao longo de simples diálogos molda, de forma linear e absolutamente grandiosa, torna esta sua melhor história e seu melhor filme até então. Ele percebe isso, e o nota com frequência, guiando e explorando tudo na base de uma ficção científica especulativa que trata de uma narrativa cheia de camadas e prioridades por nós sentidas ao longo da sessão, uma das mais deliciosas do Cinema recente, firme nos trilhos antes que as regras mudem, Antes que Tudo Desapareça para nós, talvez, e possa descambar num ‘final’ de convenções dramáticas tão devastadoras, quanto inesperadas, em si.

    Em suma, inspiradíssimo, o cara recorre com a leveza do vento (seu amigo de fé) e o estigma de jovem mestre asiático a referências autorais também, como a recorrente paranormalidade subjetiva (e as vezes objetiva) de outros filmes seus para traçar um panorama de pré-distopia de ideologias, da espécie humana e do ambiente que chamamos de casa – principalmente os dois últimos, enfatizando nosso juízo final e o repensar de nossas ações, nossas verdades, nossos juízos a respeito de ambos: Quem somos, e onde somos. Se Kurosawa perde a chance de filosofar sobre o sentido da vida que levamos em nós, e o que nos torna como somos? De forma alguma. Filosofa e eleva o pensamento sim, mas da forma única que um verdadeiro mestre faria.

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  • O Terror Japonês e seus Remakes

    O Terror Japonês e seus Remakes

    Gore Verbinski começou a trilhar um caminho praticamente sem volta para o cinema hollywoodiano, ao aceitar filmar o remake americano de Ringu. Talvez aquela altura o diretor do Tennessee não soubesse o mal que haveria de liberar, uma vez que o estúdio Dreamworks ainda não tinha certeza de que o seu O Chamado seria o sucesso que foi, especialmente por ser lançado em 2002, um ano antes da cinessérie Piratas do Caribe, sucesso máximo da carreira do cineasta.

    É ponto pacífico que Hollywood perdeu grande parte de sua inspiração nas últimas décadas, e é mais notório ainda que haja remakes de produtos estrangeiros para o mercado doméstico. Mesmo Martin Scorsese havia trazido à tona seu Os Infiltrados, uma versão do primeiro filme da trilogia Conflitos Internos, de Siu Fui Mak e Wai Keung-lau. Para entender o fenômeno recente de migração do cinema asiático japonês para o estadunidense, é preciso se debruçar sobre a obra de Hideo Nakata, diretor do primeiro Ringu e dono de um estilo de filmagem próprio, que valoriza o suspense e o mistério, e que se vale muito do sobrenatural e o desconhecido para valorizar sua obra. Foi assim também com Água Negra, que também ganhou adaptação pelo cinema mainstream americano.

    Nakata era um bom diretor, mas não inventou nada sozinho. Sua escola é semelhante a de Kiyoshi Kurosawa, cineasta por trás de Kairo (ou Pulse, na tradução dos EUA), Doppelganger e o recente Creepy, e claro, Takashi Shimizu, de Almas Reencarnadas e Ju-On – O Grito. Ambos se munem de todo o ideário japonês que trata da morte como um evento corriqueiro resultante do processo final da vida, sem necessariamente produzir uma fobia comum ao ocidente. Algo se perdeu nessa tradução, em especial no filme que coube a Verbinski, uma vez que o início de O Chamado não consegue ser nada sutil, mesmo que imite o filme original em praticamente todos os seus aspectos.

    A Duologia “O Chamado”

    A transposição dos filmes americanos além de revelar a falta de ideias por parte dos estúdios, mostra também um desespero tremendo em sua composição. Naomi Watts faz a personagem Rachel Keller, uma jornalista atormentada por uma questão familiar e obcecada para entender o que ocorreu com sua sobrinha recém-falecida, situação idêntica à vista com Reiko Asakawa no filme de Nakata. Watts já era famosa mundialmente, assim como Sara Michelle Gellar, de O Grito, e Jennifer Connelly, em Água Negra.

    Verbinski pouco acrescenta em sua versão da maldição da fita, exceto por algumas cenas conceituais no tal vídeo maldito. Tal paradigma seria também seria repetido não só em versões de filmes do Japão, mas também nos importados da Europa, vide o exemplo de REC/Quarentena e nas duas versões de Martyrs, ambos filmes de terror que fizeram sucesso recentemente e tiveram adaptações para o público americano.

    Três anos depois, os produtores da franquia americana imitariam o ocorrido com O Grito chamando o diretor japonês Hideo Nakata para conduzir a continuação de O Chamado 2, com a função prioritária de não adaptar o texto de sua versão de Ringu 2, já que a continuação citada seria muito diferente do primeiro capítulo do filme original. Ainda que houvesse esse pedido, percebe-se na verdade um resgate de muitos dos conceitos da sequência japonesa, já que todo o mote do roteiro envolve a perseguição da vilã Samara e sua maldição ao menino Aidan (David Dorfman), com Rachel tentando desbaratar a situação.

    Alguns desdobramentos dramáticos até soam criativos, mas a redução da maldição a uma trama de possessão demoníaca é pobre e bem condizente com a mediocridade em que estava inserido o cinema de horror hollywoodiano à época. Outro fator terrível é Nakata se repetindo, ao pôr detalhes de seu outro filme, Água Negra (ou Honogurai mizu no soko kara ), que também ganhou uma versão americana, pelo brasileiro Walter Salles.

    Entre os principais problemas da duologia O Chamado, estão a substituição da sutileza e alto suspense que Nakata fez no fim dos anos noventa em comparação com o uso excessivo de CGI e efeitos especiais pirotécnicos dos filmes americanos. Os personagens são menos humanizados, no caso dos adultos, enquanto as crianças são imbecilizadas. Esses defeitos se repetiriam nos demais filmes deste artigo.

    O Grito: Shimizu e sua transição em dois mercados

    Em 2002, o diretor Takashi Shimizu levou aos cinemas o começo da franquia O Grito (Ju-On no original). Já haviam versões dessa mesma saga dois anos antes, na televisão, mas a popularização do mito de Toshio e Kayako só ocorreu mesmo quando chegou aos cinemas asiáticos. A história, bastante simples em sua abordagem, não perde tempo explicando os estranhos acontecimentos que se encenam em frente às câmeras. Basicamente se conta uma história de ligação via redes, onde a primeira pessoa tem contato com um espírito desencarnado que, quando vivo, sofreu um enorme castigo e retorna do além para perturbar os vivos. Como uma doença, essa condição se espalha e várias pessoas relacionadas a morte anterior também perecem, formando assim uma rede de abusos e mortes que parece não ter fim.

    Os sustos do filme não são frequentes e não são gratuitos. O macabro se manifesta por meio de monstros que antes eram vítimas, fator que diferencia a história das demais contadas na década de 2000. A aura de mistério e suspense é levada por um conjunto de elementos com cores claras, outro fator diferencial em meio ao horror mais recente, e os efeitos especiais apesar de datados e baratos, causam espanto e pioram a sensação de perigo imediato.

    A cor pálida dos mortos remete obviamente a vida recentemente tirada, mas essa configuração de imagens unidas aos ruídos balbuciantes que eles emitem fazem lembrar os mortos vivos dos filmes de George A. Romero, em especial os de O Despertar dos Mortos e Dia dos Mortos. A movimentação dos amaldiçoados acabou sendo bastante imitada nas versões de Verbinski e Nakata em seus “Chamados”, mas claramente sem o mesmo brilhantismo utilizado aqui.

    As sequências finais são elucidativas e dão um destino digno para cada um dos desafortunados. Não demorou para a Ghosthouse Productions comprar os direitos, e em 2004, com produção de Sam Raimi, O Grito (The Grudge) chegava aos cinemas norte-americanos, também conduzido por Shimizu, e com uma boa parcela do elenco e produção formada por japoneses, uma vez que o próprio diretor não falava inglês.

    Sarah Michelle Gellar é insossa, ao contrário de dos personagens originais – que, vale lembrar, não tem um único protagonista – mas ao menos o filme acerta em reprisar o tom de extremo pessimismo do original, e até pouco explicativo se comparado aos tantos outros remakes americanos discutidos aqui.

    O Grito, como O Chamado tornou-se uma franquia rentável, com uma continuação americana, também conduzida por Shimizu, e um reboot japonês, que inclui um crossover entre Sadako (a Samara da versão japonesa) e Kayako (de Ju-On). Como parte do legado de Ringu há o uso da criança como catalisador do horror, a questão de uma criatura vingativa e injustiçada retornando do mundo dos mortos para assombrar os vivos, além do mesmo aspecto empalidecido. Por ter um único diretor esse se torna o ponto fora da curva em questão de independência artística e criativa, fato que faz até a cinessérie americana ser melhor construída do que seus primos, ainda que prossiga inferior ao material asiático. O maior dos méritos certamente é a tradução não só de cenas, mas também de atmosfera e espírito, ainda que permaneça bizarra a necessidade de se fazer todo um novo filme para dizer exatamente o que já foi dito antes.

    Pulse: Tecnologia, depressão e suicídio no cinema de Kurosawa e seu correspondente americano

    Antes até de Ju-On, o diretor Kiyoshi Kurosawa trazia a luz Kairo, que no resto do mundo ficou conhecido como Pulse. O roteiro, do próprio Kurosawa aborda o mal moderno da ausência de aceitação, usando a questão do suicídio como avatar do sentimento depressivo. Um grupo de jovens encontra um amigo enforcado em sua residência e aparições dele ocorrem nas telas dos computadores. Depois disso uma onda de mortes ocorre, sempre com a mesma característica, jovens se suicidando.

    Kurosawa utiliza muito bem os tons sombrios nos locais onde ocorrem as mortes, deixando o cenário com lascas pretas voando, que se assemelham a resquícios de objetos queimados, além de silhuetas de cor negra, no formato dos corpos nas paredes dos recintos onde estão as vítimas.

    O final de Kairo é dúbio, pois dá esperanças, embora essa esperança seja discutível. O estreante em longa Jim Sonzero capitaneou um remake de Pulse, em 2006, com um elenco repleto de atores teen e famosos, entre eles Kristen Bell, de Veronica Mars e futuramente Heroes, Ian Somerhalder que fez Lost e mais tarde faria The Vampire Diares, e Samm Levine, integrante do carismático Freaks and Geeks.

    O fato do elenco ter vários famosos, assim como em O Chamado, atrapalha a inserção do público no filme, mas o fator mais irritante é sem dúvida a troca do mote de horror, saindo a questão psicológica para restar somente uma perseguição de um monstrengo horrendo, de cor branca e múltiplos braços. Toda a sugestão é transformada em um texto fraco, bobo e óbvio. Uma pena, visto o potencial que essa versão carregava.

    Água Negra: Walter Salles e sua estréia em Hollywood

    Ainda em 2002 estreava no Japão o horror Água Negra (Honogurai Mizu No Soko Kara), também de Hideo Nakata. Nele, acompanhamos uma mulher que se divorciou recentemente – Yoshimi Matsubara (Hitomi Kuroki) – e se muda para um apartamento com sua filha Ikuko (Rio Kanno). Após alguns momentos de suspense gratuito, levados a tela através de uma televisão que registra as imagens de uma câmera de segurança, finalmente começa um drama simples, mostrando mãe e filha incomodadas com uma goteira que provém de uma infiltração já existente no apartamento antes mesmo de se mudarem.

    O original tem o ritmo um pouco lento no início, fato que dura até a primeira hora de filme. O ideal tencionado é estabelecer empatia entre espectador e personagem por meio de cenas comuns e corriqueiras, sem grandes alardes ou sustos falsos, mostrando o desespero de uma mãe que vê sua filha sofrendo a ameaça de um ser espiritual.

    O uso da água e da figura fantasmagórica infantil e feminina como elementos de horror já haviam sido vistos em Ringu, mas aqui o paradigma é mais importante e intensificado. O clichê da vilania de crianças é elevado a um nível maior nesta, com uma exposição da criatura em cenas com ângulos bem abertos, que demonstram o quão barata é a produção em especial na confecção do vilão.

    Já na versão estadunidense – dirigido pelo brasileiro Walter Salles – há um abuso do uso de famosos, a começar por Jennifer Connelly, que faz a protagonista, uma mãe também recém-divorciada que, contudo, tem uma sub-trama boba acompanhando a si, uma vez que se gasta muito tempo de tela, e consequentemente da paciência do espectador, com a disputa da guarda de sua filha, junto ao seu ex, vivido por Dougray Scott. Nesse ponto, a trama se distancia ainda mais do livro de Kôji Suzuki – também autor do livro que deu origem a O Chamado – que era mais voltado a trama e menos em conflitos entre os personagens.

    Ainda há participações de Pete Postlethwaite como um zelador de origem estrangeira cujo sotaque estranho é a marca, há também o uso de John C. Reilly em uma participação muito genérica, e de Tim Roth, que faz um advogado que recebe seus clientes em seu carro, soando caricato ao extremo. Nesses personagens, não há trabalho sobre nuances ou características únicas, o diferencial das pessoas entre si não ultrapassa a questão de arquétipos, fato que faz irritar ainda mais a porca imitação que Salles conduz.

    A discussão de questões como a vida da mulher solteira e menções a estupro também soam desrespeitosos, uma vez que só são mencionadas, sem a mínima reflexão sobre os temas. Mas apenas pincelados, fazendo-nos perguntar se o motivo desses assuntos serem abordados é por puro sadismo de roteiristas e produtores.

    A única personagem trabalhada é a Dahlia de Connelly, que é mostrada como uma moça cujo passado esconde um abandono materno. A intenção de tornar grave o background da personagem soa interessante, mas a condução faz todo o trabalho explicativo demais, portanto, desnecessário. Como nas outras versões americanas, se pasteuriza o tema, para tornar mais palatável ao público dos Estados Unidos.

    Uma Chamada Perdida: A violência de Takashi Miike e sua versão ocidental

    Era 2003, portanto, o filme mais antigo da lista. Coube ao prolifico Takashi Miike conduzir Uma Chamada Perdida, ou Chakushin Ari no idioma original. A história é simples, e mostra uma moça que recebe uma mensagem na sua caixa de voz no celular. O conteúdo é apenas de um grito desesperado, e aos poucos ela investiga a origem dessa ligação. Como em O Chamado, Miike se vale da tecnologia que se tornou recentemente popular entre os mais jovens, com o uso de telefones móveis, como catalisador do medo e horror, transmitindo a maldição como se fosse uma doença venérea, apelando então para outro clichê do gênero terror, aqui muito bem empregado.

    Mais uma vez não se explica o porquê do mal que assola os vivos, e a construção da tensão é lenta e gradual, só ocorrendo a exposição de mortes com quase uma hora de tela, mostrando então um nível agressivo de gore, típico do trabalho do cineasta. O diretor posiciona sua câmera de modo estratégico, com closes nos personagens amaldiçoados, que fazem lembrar os ângulos usados no western spaghetti, desde Sergio Leone a Gianfranco Parolini, normalmente escondendo o terror atrás desses personagens, mas sem correr o risco de revelar demais, uma vez que a mostra das criaturas perseguidoras é bem tímida, expondo pouco até o clímax.

    Os mortos são representados com cores acinzentadas, voltadas para tonalidades mais escuras e aspecto úmido. Graficamente, a criatura atemorizante é a melhor construída dentre os cinco exemplares analisados, com um aspecto gore que remete visualmente a literatura clássica, com influências de contos de terror japoneses antigos, passando por H. P. Lovecraft e Mary Shelley.

    Em 2008, era lançada a versão norte americana, dirigida por Eric Valette, o mesmo de Sinais do Mal. Já no começo as manifestações de terror são absolutamente sensacionalistas, e a tal maldição é mostrada através de perseguições a atores jovens, bonitos e que faziam papéis bem pequenos em seriados populares.

    A montagem que remete a um videoclipe e o roteiro raso não conseguem fazer jus ao trabalho de Miike e poucas tentativas de discussão se salvam, como o uso de uma visão crítica sobre os programas pseudo religiosos que abarrotam os canais abertos dos Estados Unidos, equivalentes aos “Fala Que Eu Te Escuto”, ainda que esses tenham um apelo midiático maior que o programa que passa nas madrugadas brasileiras. O problema é que até esse acerto demora a acontecer, visto que Bethe Raymond (Shannyn Sossamon), a mocinha da vez, é completamente incrédula em relação a isso, retardando portanto o contato de outra vítima, Taylor (Ana Claudia Talancón) em aceitar participar do programa. Nessa sequência há o uso das lacraias gigantes – que já apareciam com os mortos que recebiam as ligações mortais – em  imagens e ídolos católicos. O deboche a charlatanice pode ser confundido com desrespeito religioso, ainda que não tenha reprise disso no texto final, e se esse aspecto for invalidado, não há mesmo nada que salve o filme.

    As mortes ocorrem de maneira criativa, imitando a franquia Premonição, e não há aura de suspense, ou atmosfera de terror, soando portanto como um produto genérico, que pega emprestado alguns elementos do original, como as ligações, e ainda insere um aspecto bobo, que são pequenos doces vermelhos, que lembram pedras semipreciosas, que por sua vez caem da boca dos que perecem. A versão apela para aparições de fantasmas, que lembrariam em excesso o vindouro Sobrenatural, de James Wan, também há menções a crianças macabras, mostrando que a produção americana atira para qualquer estereótipo de terror.

    Conclusão

    O terror japonês e asiático é incrivelmente bem construído há tempos, vide o exemplo de Hausu, filme de Nobuhiko Ôbayashi, que em 1977 já antecipava todo o horror de Poltergeist – O Fenômeno e Amityville, além também da coletânea Kwaidan – As Quatro Faces do Medo, de Masaki Kobayashi, que em 1964 já juntava pequenas histórias de terror em um único filme. De Onibaba – O Sexo Diabólico a Tetsuo: O Homem de Ferro, há influências do cinema de horror e ficção-científica japonesa sobre o mainstream hollywoodiano, mas não de maneira tão literal quanto esse período do começo dos anos 2000.

    A maioria dos filmes analisados não tiveram grandes continuações, tampouco se tornaram franquias, exceção claro a Uma Chamada Perdida, que teve continuações de sucesso moderado, e claro, O Grito e O Chamado, que já sofreram reboots no Japão, transformados em espécimes mais explícitos e que fazem um uso terrível de CGI e demais efeitos de computação, retomando para si a influência do terror americano, perdendo a aura de suspense e de sustos por meio da atmosfera. A fórmula se desgastou, ao ponto de ter um evento recente de crossover, batizado de Sadako vs Kayako, ou Chamado vs O Grito, ao pior melhor (ou pior…) estilo Freddy vs Jason e Alien vs Predador.

    A fonte não secou, uma vez que Takashi Miike ainda faz bons filmes de terror, em meio aos milhares de exploitation que homenageia em sua filmografia, Kurosawa fez o já citado Creepy, enquanto Shimizu e Nakata tentam reprisar os bons momentos de seus cinemas, mas é fato que o terror americano conseguiu superar a entre-safra, produzido boas coisas, desde os produtos de James Wan – que é malaio – como Sobrenatural e Invocação do Mal, e outros como Corrente do Mal, A Bruxa entre outros. Ainda há um uso exacerbado de refilmagens de grande franquias americanas, mas a reserva moral para produtos autorais tem um bom destaque, superada finalmente essa onda de versões de produtos asiáticos, ao menos por enquanto. Talvez o único serviço indiscutivelmente bom que os cinco objetos analisados fizeram foi atrair a atenção do publico ocidental sobre o horror oriental, não tão popular quanto deveria, dada sua qualidade indiscutível.

  • Crítica | Creepy

    Crítica | Creepy

    528848Em determinada cena, logo após percebemos o que o novo filme de Kiyoshi Kurosawa pode nos fazer sentir (revolta, indignação e tensão à flor da pele), um detetive entra no tenebre covil onde levou ‘sua’ investigação e observa, ao redor. Nada parece vivo, tudo está morto e decadente, esverdeado e acinzentado tal tantas vielas de tantas cidadelas. Seus olhos, já cansados de uma vida inteira caçando provas e evidências, escaneiam o ambiente num misto de sedução e medo inerentes mesmo aos experientes detetives.

    ata, até ir longe demais, pisar num buraco e cair na armadilha preparada ao coelho. Assistir a Creepy, desde os primeiros cinco minutos oferece a mesma sensação de vertigem e apreensão que a cena descrita, acima, basicamente falando. Uma bomba que não explode; uma cobra que não cede ao bote; uma tensão constante apoiada no movimento contido de um espetáculo artificial onde Kurosawa propõe a extração de um realismo tão básico quanto primitivo, buscando talvez a redenção que artistas procuram quando a história pode ser complexa demais, e a investigação recorrente em vários filmes recentes sobre as raízes do horror na percepção humana, do mesmo.

    Para superar um trauma do passado, o detetive afastado da profissão Takakura se muda com Yasuko, sua esposa para uma nova casa, uma nova vida, agora como professor de psicologia criminal (o que rende cenas fortes que exploram com grandeza o talento de Kurosawa com atores), porém ainda ‘perturbado’ com o caso de uma família que desapareceu há anos e que nunca foi solucionado – uma hipótese prestes a atrair fatos horripilantes e inesperados à trama: Cética, cuja natureza semimorta fora extraída de uma tela de Cézanne, e presa ao sentido Creepy (arrepiante) do termo, assim sendo; calcada e suportada pela modelagem do silêncio uniforme como verdadeiro e talvez, numa revisão, o único protagonista e orientador de uma atmosfera talhada em perfeição, enquanto projetada nos mínimos detalhes, em prol de nossa hipnose e imersão graduais num universo de demência, danação e submissão (dos sentidos) ao terror que pode existir no coração de pessoas indiscutível, aparente e totalmente… inocentes, tipo um coelhinho.

    Isso porque Kurosawa é o tipo de cineasta que ama filmar um fiapo de história, que se apropria de um simples mote do tipo “fulano foi na padaria, comprou pão e não voltou pra casa” para transformá-lo, a partir de sua direção, num grande filme igual a esse. Usa e abusa do tempo narrativo, do tempo das imagens, da simetria sonora, do valor das sombras, do valor novamente do silêncio, e de raros momentos de explosão emocional para ir configurando (sem pressa) seu quebra-cabeças e embaralhá-lo, a olhos nús; coisa de mestre. Um presente de natal para o espectador atento, e uma tarefa difícil para quem tem o olhar viciado, típico do século XXI, e encontra dificuldades em acompanhar um ritmo necessariamente mais lúcido e devagar: Voltado a o que realmente importa. Uma porta. Um olhar. Atenção ao vento, expressa o artista, ao farfalhar das folhas, e porquê não, ao invisível. Tudo para pesquisar, de várias maneiras, como se parece a luz e a escuridão que moram nas pessoas. Um filme de condição humanista, assim, para o bem e para o mal, mas sobretudo imparcial para ambos os conceitos existenciais de seres coletivos, mas individualmente abismais como você, e eu.

    Condição essa que nos remete, mais uma vez, ao uso de tons frios no visual adotado em Creepy: Difícil pensar em outro filme recente que depende, que se submete mais à cor e suas vibrações para existir e nos surpreender que este. Por essas e por outras, Kurosawa faz seu A Ilha do Medo, de Martin Scorsese, e consegue com extrema sutileza superar o mago americano no uso superior de signos a pontuar, com precisão cirúrgica, um pacote intimista na tarefa árdua (e que os melhores fazem parecer simples) de testar nossa sagacidade diante de uma obra de arte. No caso, uma que demora um pouco para engrenar, para enfim romper o lugar-comum ocupado por oito entre dez filmes policiais que aparecem todo ano, mas é apenas o cinema sul-coreano agindo para ser, incansavelmente, um dos melhores do mundo, hoje em dia.